Há museus que prezam pela perfeição, e podem ser por isso muito bons. Outros são mais normais, mais parecidos com uma coleção de artefatos reunidos e mantidos por pessoas comuns, e por isso, imperfeitos.
O Yankee Air Museum está em categoria à parte, pois sua situação atual é de espera, espera para crescer. E isso causado pela história importante do local onde ele está instalado. Explico.
Inaugurado em 1981, ocupava um local no Aeroporto Willow Run, localizado em área que pertence a dois municípios, Belleville e Ypsilanti, ao lado e a leste de Ann Arbor e a cerca de 30 quilômetros de Detroit. A fábrica e o aeroporto de Willow Run foram construídos durante a Segunda Guerra Mundial, nessa área que já pertencia à Ford desde os anos 1930.
O aeroporto hoje tem empresas de transporte de carga, aviões particulares de empresas e de uso pessoal, não sendo utilizado por linhas aéreas, estas todas operando no DTW, Detroit Metro, o aeroporto principal da região.
Havia um hangar específico para o museu, abrigando aeronaves expostas internamente e outras em condição de voo, além de mais algumas ao ar livre. Em 2004 um incêndio destruiu esse hangar, com muita coisa perdida, mas ao menos os aviões que voavam e os que estavam fora foram salvos.
Depois disso, o acervo foi reorganizado em um hangar alugado próximo do incendiado, este local que visitei, do lado leste do aeroporto.
Quando foi determinada a demolição da antiga fábrica dos bombardeiros — lado oeste do aeroporto — foi criada rapidamente a organização chamada Save The Bomber Plant, que atuou junto às autoridades e conseguiu que parte do enorme edifício de 1,6 quilômetro de comprimento, em seu lado mais longo, fosse mantido. Sobraram cerca de 13.400 m², que serão todos utilizados pelo novo museu.
A organização é ativa no trabalho de manter essa parcela do edifício de grande importância para a vitória aliada na Europa sobre a Alemanha. A frente do trabalho, dois presidentes — na verdade mais simbólicos por serem figuras populares — Jack Lousma, ex-astronauta, e Bob Lutz, talvez o mais famoso executivo de indústria automobilística dos tempos atuais, hoje aposentado. De se notar que um deles é do mundo das aeronaves e outro dos automóveis, simbolizando a sempre ótima união de carros e aviões.
Em Willow Run foram fabricados 8.685 bombardeiros B-24 Liberator, projeto da Consolidated, mas que como vários outros aviões durante a guerra, foram produzidos em fábricas de automóveis, que ficaram sem produzí-los durante o período de guerra. Mas aqui em Willow Run essa iniciativa de emergência foi além.
A linha mestra dessa fábrica foi a implantação da linha de montagem, algo antes só feito com automóveis. O plano foi idealizado por Charles Sorensen, o engenheiro-chefe de manufatura da Ford. Edsel Ford atuou ativamente, já que ocupava o cargo de presidente da empresa, com o pai Henry já não tão ativo mas ainda trabalhando. Claro que para isso foram utilizados os processos normais da Ford. Toda a fábrica, de 464.511 m² desenhada pelo arquiteto Albert Kahn e mais uma vila para moradia de cerca de 15 mil trabalhadores foi feita em menos de um ano, operando já em 1941. No auge da produção trabalharam 42 mil pessoas no local. A responsabilidade de toda a construção e também o dinheiro — estimado em 50 milhões de dólares, valor da época — veio também da Ford Motor Company, e isso já nos dá ideia do que significa a expressão “esforço de guerra”.
Era possível montar um avião inteiramente em um dia, algo impensável mesmo nos dias atuais, com o pico máximo de velocidade de produção resultando em um avião pronto a cada hora, mas isso era caso excepcional, quando tudo era perfeito, o que nem sempre ocorria.
Henry Ford, amigo pessoal de Charles Lindbergh, o contratou sem pagamento para que este voasse frequentemente nos aviões produzidos e sugerisse melhorias, o que foi feito. Henry visitava praticamente todos os dias durante dois anos a fábrica, dando seu total apoio à luta americana e aliada contra a enorme ameaça alemã.
Uma mudança social grande também teve participação da fábrica, com mais e mais homens sendo levados aos campos de batalha, e muitas mulheres assumindo o trabalho na fabricação dos aviões. Foi criado um quase-personagem, Rosie the riveter (Rosie a rebitadora), além de pessoas de origens variadas todas unidas para auxiliar o país — podemos dizer, o mundo — em um objetivo comum. O desenho-símbolo destas trabalhadoras é bastante famoso e também ilustra a capacidade feminina para desenvolver trabalhos antes só atribuídos aos homens.
Dessa forma, a situação de agora do museu é bem apertada, com poucos aviões expostos, mas muitos artefatos interessantes de várias épocas.
Depois de finda a guerra, o local foi usado pela Kaiser-Frazer para fabricação de seus automóveis. De lá saíram mais de 700 mil unidades das duas marcas. Além disso, a General Motors utilizou também a fábrica como local de fabricação de câmbios automáticos, os populares Hydramatic, nome tão importante que se tornou no Brasil um sinônimo de automático, com muita gente falando que qualquer câmbio desse tipo era “hidramático”.
A mais antiga aeronave no local é um Spad XIII, caça francês da Primeira Guerra Mundial. Muito leve, com peso máximo de decolagem de 845 kg, tem motor V-8 arrefecido a ar de 220 hp, fabricado pela Hispano-Suiza, também um fabricante de automóveis de alto desempenho e preço. Com ele, o Spad chegava a 217 km/h em voo nivelado, sendo cerca de 20 km/h mais veloz que os caças alemães, como os Fokker D e Dr.
Entre os poucos aviões, estão juntos um McDonnell Douglas F-4 Phantom II, caça-bombardeiro utilizado desde o conflito do Vietnã e que é um dos mais famosos aviões militares da história. Com dois tripulantes, dois motores e um tamanho avantajado, atingia duas vezes a velocidade do som, e mesmo assim podia atacar o solo voando a velocidades mais humanas, além de ser manobrável o suficiente para o dogfight (combate aéreo). O exemplar exposto tem a camuflagem padrão sudeste asiático, com marrom e verde dominantes.
Logo atrás do F-4, um outro caça de múltiplas missões do mesmo fabricante, um A-4 Skyhawk, um dos mais fabricados e utilizados jatos militares. Foram 2.960 construídos, e no Brasil temos uma versão modernizada A-4M empregada pela Marinha. Esse Skyhawk do museu é da versão naval, com trem de pouso dianteiro longo, para deixar o avião em ângulo de ataque elevado na aceleração da catapulta de lançamento, facilitando a decolagem. Havia uma capa metálica ao redor do pistão do trem para que ele não cedesse com o tempo, o que não permitia ver esse componente.
Interessante também é a grande quantidade de geradores de vórtices nas asas, pequenas aletas que servem para agitar o ar junto da asa, para que a camada de ar demore mais a descolar, retardando a perda de sustentação. Elementos importantes em aviões que precisam voar com controle preciso a baixa velocidade, como os que pousam em porta-aviões ou pistas muito curtas.
Em muitos museus há cabines de aviões e helicópteros que podem ser visitadas ou apenas vistas e o YAM não é exceção. O bom detalhe aqui é que não a poeira não faz parte de exibição, tudo está extremamente limpo. Há uma cabine de comando do B-24 Liberator, o bombardeiro fabricado no local há mais de 70 anos. Não se pode entrar nela, mas é bacana de ver mesmo assim.
Uma outra cabine de maior tamanho e mais moderna pode ser visitada, de um avião-tanque Boeing KC-135, e está em ótima condição. Foi restaurada com apoio da General Motors e do UAW, o sindicato dos trabalhadores da indústria automobilística americana. Algum paralelo com a utilidade dos sindicatos brasileiros?
Um Bell SeaCobra AH-1J, helicóptero de ataque ao solo, está com a tampa do motor a jato aberta, e também se pode ver muito de perto o canhão rotativo de 3 canos na dianteira. Nessa versão dos Marines, o Cobra é uma das aeronaves de asas rotativas que tem o artilheiro acomodado na frente e o piloto atrás, sentado mais alto, sendo o primeiro a usar essa configuração, hoje padrão em todos os helicópteros leves de dois lugares para ataque ao solo.
Como quase todos os itens do museu, está sem nenhum tipo de isolamento um Republic F-84 Thunderstreak (foto de abertura da matéria) que foi utilizado pelos Thunderbirds, com sua bela pintura. Para mais algo sobre os Thunderbirds, veja essa matéria sobre o show aéreo Thunder Over Michigan, também organizado pelo museu todos os anos.
Esse avião foi utilizado apenas por dois anos pela esquadrilha, 1955 e 1956, tendo sido aposentado pelo desempenho insatisfatório para acrobacias de precisão. Mesmo assim é ótimo poder ver bem de perto a aeronave, de tomada de ar frontal e superfícies polidas onde não há pintura.
Há vários itens militares não só americanos, veja as fotos a seguir.
O Yankee Air Museum tem em área externa um bombardeiro B-52, mas que atualmente está onde não pode ser visto de perto. Está sendo restaurado em partes, para no futuro passar a ser abrigado dentro das novas instalações. Ele aparece nas fotos do incêndio, mostradas acima, e abaixo no desenho do novo museu em Willow Run, que passará a se chamar Museu Nacional de Aviação e Tecnologia.
O site oficial da campanha para finalizar a construção do hangar que abrigará o museu é este: www.savethebomberplant.org
O Yankee Air Museum tem várias aeronaves históricas em condição de voo, e promove várias atividades para arrecadar recursos para a obra. Todos os detalhes sobre isso estão no site do museu: http://yankeeairmuseum.org/
Para terminar a visita, fui até um canto do estacionamento — grande e grátis — onde está a versão de reconhecimento fotográfico do Republic F-84 Thunderstreak, chamado RF-84F Thunderflash , e estacionei ao lado dele, sob chuva, para uma foto em homenagem à Ford e seu esforço para realizar algo que, sem dúvida, foi decisivo para derrotar Hitler e suas ideias desumanas. Carros e aviões tem muito em comum, sendo instrumentos de liberdade em análise final.
Abaixo um vídeo mostrando resumidamente a história da incrível fábrica durante seu período de atividade, e a posterior criação do Yankee Air Museum.
JJ