Quando saiu a notícia de que Gordon Murray estava trabalhando no projeto do T.25, um pequeno carro compacto urbano, muitos torceram o nariz, argumentando que era um grande desperdício de tempo de alguém tão capacitado. Outros falavam que ele estava ficando velho, desatualizado demais para acompanhar a evolução dos supercarros modernos.
Estavam completamente enganados. Além do pequeno carro ser muito bem pensando, Murray não estava nem um pouco defasado do mundo dos carros esporte. E quando ele anunciou no começo do ano que iria voltar ao mercado dos supercarros com o projeto T.50, mostrou a todos que estava na ativa e não viria com nada menos do que o melhor.
O novo T.50 foi descrito por Murray como sendo “o supercarro mais puro, mais leve e mais focado no motorista de todos os tempos”. Simples, não? Da última vez que ele usou na mesma frase palavras como estas, o mundo conheceu o McLaren F1 em 1993. E ele não estava sendo metido, apenas sendo realista.
Diferente do F1, o T.50 não vai correr atrás de nenhum recorde de velocidade ou de aceleração. Murray já teve sua dose neste campo, sendo recordista de velocidade máxima por nada menos que doze anos. O McLaren só perdeu seu título de carro mais rápido do mundo para o Bugatti Veyron em 2005.
Para se ter um carro rápido em linha reta, é preciso de potência, e com mais potência precisa-se de mais reforço na estrutura do carro e mais capacidade de arrefecimento, e isso significa mais peso. Justamente isto que fez do Veyron um monstro de duas toneladas. O McLaren F1 chegou no limite do compromisso entre peso e velocidade.
Murray quer que o T.50 seja o melhor carro para desfrutar o prazer de dirigir de todos os tempos. Esta já era uma das premissas do F1, mas ao invés de velocidade máxima, o novo carro vai ser veloz nas curvas. E assim como o F1, o grande trunfo vai ser a aerodinâmica.
As soluções usadas no T.50 em boa parte não são novas em termos de conceito. Na verdade, a principal arma para melhorar o desempenho do carro foi usada há mais de quarenta anos, e já estava presente no F1 em menor escala.
Brabham BT46B “Turbina” – A origem
Seguindo o conceito do efeito solo introduzido na Fórmula 1 pelo Lotus 78 e previamente comprovado pelo Chaparral 2J de Jim Hall, a ideia de diminuir a pressão de ar sob o carro para gerar mais downforce sem grandes perdas por arrasto era o caminho a ser seguido.
Para reduzir a pressão embaixo do carro, era preciso aumentar a velocidade do ar (pela física, quanto maior a velocidade de um fluído passando por um determinado caminho, menor será a pressão local). A Lotus havia criado o perfil do assoalho em forma de venturi. Murray na época era projetista da Brabham, e esta solução do venturi (difusor de ar que aumenta a seção ao longo do comprimento), por melhor que fosse na teoria, era um problema de ser implementada.
Enquanto que o Lotus 78 utilizava o motor Cosworth V-8, o Brabham BT46 corria com o motor Alfa Romeo de doze cilindros contrapostos, que era baixo porém plano e largo, obstruindo o caminho que poderia ser destinado aos venturis, que precisam de espaço para serem eficientes. Mesmo com a Alfa Romeo disposta a mudar o motor para um V-12, não haveria tempo hábil para isso na mesma temporada.
Gordon Murray então teve que apelar para outro recurso que não fosse o venturi. Se não era possível acelerar o ar naturalmente por conta da forma do assoalho, então uma solução seria forçar o ar a ser mais rápido. Mais ou menos como na admissão de um motor, onde o ar entra por aspiração natural, quando se coloca um turbocompressor o ar é forçado para dentro. Murray precisava de um “turbo” para o ar passando embaixo do carro.
O conceito do Chaparral que tinha uma espécie de turbina já tinha se mostrado bem eficiente, tanto que o 2J era rápido e foi banido. A utilização de um sistema de sucção que direcionasse o ar que passava por baixo do carro seria bem aplicada no lugar dos venturis, grandes demais para o espaço disponível no BT46.
Murray era esperto, sabia que já havia limitação no regulamento quanto a “partes móveis” nos carros. Um trecho específico do texto sobre aerodinâmica dizia que “qualquer coisa cuja função primária tenha influência na aerodinâmica do carro deve permanecer estacionária e ser fixa à massa suspensa do carro”. Isso significava que a turbina girando era uma parte móvel, logo, proibida.
Com a ajuda de um amigo advogado para pegar as sutilezas do texto, Murray entendeu que a grande sacada era o termo “função primária”. Se havia uma primária, poderia haver uma secundária. E se a turbina tivesse uma função primária diferente de ser um elemento aerodinâmico, tudo certo. E assim foi feito.
Murray projetou o BT46 versão B para que parte do funcionamento da turbina fosse realmente usado para sugar o ar debaixo do carro, e outra parte para sugar ar de cima do carro para o radiador. E, como mais ar passava pelo radiador do que era sugado debaixo do carro, a função primária da turbina era arrefecimento, e não um elemento aerodinâmico. Genial.
Ele nunca escondeu de ninguém que aquela enorme turbina pendurada atrás carro sugava o ar que passava sob o carro, mas o discurso era sempre o mesmo. Ela gera downforce por criar pressão negativa sob o carro, mas ela funciona principalmente para arrefecer o motor.
O vídeo acima ilustra o funcionamento do sistema da Brabham. Está em italiano, mas é bem claro na imagem como o ar passa por baixo do carro e é puxado para sair no centro, pela turbina. Por cima, o ar é sugado, passando pelo radiador. Vemos bem como o motor Alfa Romeo é largo e baixo, repleto de coletores de escapamento que passam perto do chão, obstruindo completamente o espaço que poderia ter um extrator em forma de venturi.
O risco deste sistema para o piloto era o mesmo do efeito solo, onde a variação de altura e pressão faria com que o carro perdesse o downforce repentinamente e o piloto ficaria sem controle. Como as saias laterais que vedavam o fundo do carro se desgastavam com o tempo por esfregar no chão, Murray montou no painel do carro um altímetro de avião que pegaram em um ferro-velho.
O altímetro funciona por diferença de pressão, e no caso, a pressão do assoalho e do ar externo, captada por um tubo de pitot montado no bico do carro. Pintaram uma faixa verde e uma vermelha no instrumento, e avisaram os pilotos para ficarem atentos. Se o ponteiro estivesse no verde, tudo certo. Se estivesse no vermelho, algo estava errado e o carro estava sem pressão aerodinâmica, logo sem downforce, então era para reduzir a velocidade.
A primeira e única corrida do BT46B foi na Suécia em 1978, onde Niki Lauda venceu com facilidade. Seu companheiro John Watson não terminou a prova por problemas no acelerador. Murray conta que depois da corrida, os inspetores técnicos questionaram o sistema, pressionados pelas demais equipes a tomarem alguma providência. Fizeram até testes no carro e comprovaram que a função primária da turbina era arrefecer o motor (55% do fluxo de ar que saída pela turbina passava pelo radiador, e só 45% vinha do assoalho). O corpo técnico da FIA afirmou que o carro era legal, e que poderia ser usado até o fim do ano, mas que em 1979 mudariam o regulamento para tirar essa brecha.
Bernie Ecclestone, dono da Brabham na época, ordenou que o BT46B fosse revertido para a versão original sem a turbina, pois ele já estava na politicagem para criar a Associação dos Construtores da Fórmula Um (FOCA – Formula One Constructors Association) e não queria problemas com as demais equipes, que ameaçaram abandonar a associação se o carro continuasse a correr. Política em primeiro lugar.
O McLaren F1
Contamos aqui no AE boa parte da história do F1, possivelmente o melhor carro esporte já feito. Murray utilizou muito do aprendizado das pistas neste projeto, que tinha que ser o melhor carro de todos os tempos. Prazer em dirigir era o objetivo.
Uma das maiores qualidades de Murray é o gosto pela simplicidade, pelo trabalho limpo e objetivo. O F1 foi concebido nesta linha. Um carro completo, com o melhor da engenharia e excelente qualidade, mas limpo, sem grandes complicações. Nada de vários turbos como nos concorrentes da época. Nada de aerodinâmica complicada, cheia de entradas e asas para todos os lados.
Murray queria o F1 como a melhor experiência em dirigir, o melhor em prazer em dirigir. E, na época, queria que fosse o mais rápido. A aerodinâmica e leveza na construção eram as premissas técnicas do projeto. O uso de compósito de fibra de carbono na estrutura do carro daria a leveza e resistência necessária.
A aerodinâmica traria tanto a baixa resistência na penetração do ar quanto potência ao motor. O F1 usava o mesmo recurso que os carros de corrida, onde o ar captado na região do teto era jogado diretamente no coletor de admissão, fazendo o chamado ram effect, que atua como se fosse um turbocompressor. Quanto mais rápido o carro vai, mais ar é jogado para dentro do motor por conta da velocidade.
Diferente do problema encontrado no BT46, o carro de rua teria espaço para um extrator com forma de venturi, obviamente em menores proporções que num carro de corrida. A mesma solução do Brabham foi adotada no F1 de rua, em menor escala. No lugar de uma grande turbina no meio do carro, dois pequenos motores elétricos com ventoinhas de kevlar fixados no assoalho ajudavam a controlar a pressão de ar sob o carro, otimizando o rendimento do extrator.
Como o F1 tinha uma linha de carroceria suave, não tinha aerofólio traseiro nem grandes entradas de ar, o coeficiente de arrasto aerodinâmico era baixo. O downforce necessário para manter o carro estável vinha do assoalho. Isso tudo permitia que o F1 chegasse aos mais de 380 km/h com seu motor aspirado de 620 cv.
Era simplesmente a obra-prima da engenharia automobilística.
O novo T.50
Quando a McLaren voltou a fabricar carros de passeio em 2010 com o MP4-12C, a exuberância técnica do F1 não estava mais presente. Era um excelente carro, mas competitivo na classe de Porsche 911 e Ferrari 458, focado em ter volume de produção em massa. Não era mais o superlativo que o F1 foi. Também custava uma fração do preço.
Com o anúncio do T.50, algo grandioso em termos técnicos já era esperado. Murray criou uma nova divisão chamada Gordon Murray Automotive (GMA), separada sua empresa de design, a Gordon Murray Design, para o projeto e posterior construção do T.50. Provavelmente será o nome final da marca, que terá uma fábrica em Surrey, na Inglaterra.
Recentemente saíram as primeiras imagens oficiais do projeto, um belo estudo de design e que mostra o principal recurso do carro: o efeito solo com o uso de uma turbina, assim como o BT46B e o McLaren F1. Será um carro compacto, menor que um 911 atual.
Este será o verdadeiro sucessor do McLaren F1, mesmo não sendo um McLaren. Murray manteve o mesmo conceito de três passageiros com o motorista sentado no centro do carro e os outros dois ocupantes deslocados para trás, cada um de um lado do motorista. A experiência e o prazer em dirigir novamente ficam em primeiro plano, assim como foi o F1. Como falado antes, recordes não são o objetivo deste carro, mas sim a qualidade e a satisfação do motorista ao guiar.
O motor será novamente um V-12 de aspiração natural. No lugar do BMW usada no F1, o novo carro terá um motor Cosworth 4-litros de aproximadamente 650 cv que será capaz de girar a incríveis 12.100 rpm, mais do que muitos motores de corrida mundo afora.
Também manteve a premissa de ser um carro de linhas limpas, sem penduricalhos na carroceria que estragam visualmente a harmonia do carro. Justamente esta premissa é que faz do T.50 o carro com a aerodinâmica mais sofisticada do mundo. Com a tecnologia e controles eletrônicos que existem hoje, Murray bolou um sistema adaptativo que controla todos os mecanismos que atuam na aerodinâmica do carro.
Assim como no F1, o downforce do carro virá principalmente do efeito-solo ajudado por uma turbina, mas igual ao BT46B, a turbina ficará montada na traseira do carro. A publicação da GMA aponta que esta terá 400 mm de diâmetro, será parte integrante do design do carro de forma bem elegante, como todos os desenhos assinados por Murray.
A tecnologia envolvida no T.50 está no controle do fluxo de ar completo ao redor do carro, junto com o fluxo que passará por dentro dele, canalizado até a saída da turbina. A grande sacada do sistema inteligente do T.50 não é perto da velocidade máxima, mas sim nas velocidades intermediárias.
Explico: todo componente de um carro de alto desempenho é projetado para trabalhar em uma determinada condição, tendo o máximo de rendimento em uma faixa de trabalho prevista. Os extratores de um carro de corrida, por exemplo, são projetados para máxima eficiência nas altas velocidades. Em velocidades menores, não são tão bons. Isso porque um carro de corrida vai passar boa parte do tempo em altas velocidades, logo, ele é otimizado para esta condição.
Em um carro de passeio, a velocidade máxima raramente é atingida, e quando acontece este está em condições muito específicas. Para a melhor experiência em pilotagem de um carro de passeio, as condições mais usadas são as velocidades intermediárias, variando das curvas lentas até as curvas mais rápidas, mas ainda longe das altas velocidades. Um carro de passeio não vai fazer curvas a 300 km/h, mas a 200 km/h, talvez.
O que Murray fez foi criar um conjunto de recursos que faz a função de um extrator adaptativo. Quando o carro está em velocidades menores, a turbina funciona de uma maneira. Quando está em velocidades maiores, funciona de outra. Ela ajuda a controlar o quanto o fluxo de ar no extrator está sendo eficiente.
Existe um fenômeno chamado descolamento de camada limite. O ar passando pelo assoalho e pelo extrator se comporta mais ou menos como a água correndo em um córrego. Em condições “normais”, está sempre em contato com as paredes a sua volta, mas em determinadas situações pode ocorrer uma turbulência e o fluxo de ar de afasta das paredes. O ar que antes fluía de forma “lisa”, começa a ficar todo bagunçado e irregular. Isso acontece a partir de certa velocidade, especialmente quando a superfície não é uma linha reta.
O extrator de um carro para ser eficiente e provocar uma boa queda de pressão do ar precisa ser agressivo, ou seja, variar de altura de forma considerável. Esta variação brusca no seu caminho é o que faz com que o fluxo de ar acelere, mas consequentemente, também pode aumentar a geração da turbulência. Este fenômeno, junto com outros mais complicados, reduz a eficiência do extrator, e a turbina elétrica do T.50 ajuda a controlar isso, mantendo a camada de ar lisa e em contato com o extrator por mais tempo e em mais condições, por meio de pequenos dutos que a ligam à superfície do extrator por dentro do carro. Ela aumenta o leque de condições que o extrator funciona bem.
Além da turbina eletrônica e seus respectivos dutos, o T.50 terá dois flaps montados na traseira com controles independentes, assim como foi feito no Pagani Huayra, que falamos em 2011 aqui no AE.
Este controle de ar adaptativo inteligente em função da velocidade é a grande novidade do carro. Murray pretende colocar seis modos de regulagem a disposição do motorista, selecionados por um comando no painel. Um deles é chamado Streamline, onde os dutos do assoalho e extrator são fechados e a turbina traseira gera um grande fluxo de ar que simula uma carroceria tipo “cauda longa”, que reduz o arrasto aerodinâmico em mais ou menos 10% no T.50 em específico. O conceito da cauda longa foi muito bem explicado pelo Luiz Veiga aqui no AE.
Vale lembrar que não só do ar passando por baixo do carro é que se faz o downforce. O ar passando por cima e em volta também. Tudo é parte de um único corpo atravessando uma barreira. A parte de cima do carro também afeta o fluxo na traseira do carro, e novamente a aerodinâmica ativa controla todo este conjunto.
Não é complicação, é refinamento
Por que não fazer o projeto do carro com a aerodinâmica convencional? Como o próprio Murray explicou nas suas premissas, o carro deveria ser excelente de dirigir em qualquer situação, e com um carro convencional, o downforce aumenta proporcionalmente ao quadrado da velocidade. Se o carro tivesse um bom downforce em médias velocidades como ele queria, em alta velocidade seria excessivo.
Muito downforce em alta velocidade significa que a suspensão tem que ser muito firme para que o carro não chegue ao fim de curso, o famoso “dando batente”. O carro ficaria ruim de andar, desconfortável. Em um carro de corrida, tudo bem, mas em um carro de passeio isso era inaceitável para Murray. Para que isso não acontecesse, as possíveis soluções seriam complicadas e pesadas, como uma suspensão hidráulica que compensasse o aumento do downforce.
A aerodinâmica ativa contorna esse problema. Ela dispensa o uso destes recursos, gerando sempre o downforce necessário para cada situação, nem a mais, nem a menos. O sistema da turbina elétrica deve pesar menos de 1,5 kg, muito menos que qualquer suspensão hidráulica. O objetivo de Murray é que o T.50 pese menos de uma tonelada, ainda mais leve que o McLaren F1, que pesava 1.150 kg.
A leveza é a chave para o sucesso do carro, assim como foi no McLaren. Um carro leve é um carro ágil, mais fácil de acertar e se comportar de forma previsível e satisfatória. Murray é especialista nesta filosofia. O T.50 deve ter soluções extremas, assim como foi o McLaren F1, que até o rádio original da Kenwood era pesado demais e fizeram um com metade do peso.
Não me surpreenderia se o T.50 chegar a velocidades próximas do F1, já que terá um motor mais potente e uma aerodinâmica extremamente inteligente. Não vai chegar ao nível do Bugatti Chiron que tem o dobro da potência mas também tem o dobro de peso do que Murray pretende, mas ainda assim deverá ser rápido, talvez o carro com motor aspirado mais rápido do mundo.
Aguardaremos ansiosos pelo melhor carro focado no prazer de dirigir de todos os tempos. Ah, sim, ele terá um câmbio manual de seis marchas, caso estejam se perguntando.
MB