O antigo ditado que fala que “todos os caminhos levam a Roma” remete ao fato de que durante o Império Romano, a criação de estradas e vias de comunicação entre diversas regiões da imensa extensão do antigo império eram conectadas à capital, Roma. Hoje em dia, quer dizer que há várias formas de se fazer a mesma coisa. No título desta matéria fiz uma pequena alteração no ditado para se adequar ao assunto em questão.
Na engenharia, a lógica do ditado é uma grande verdade. É possível criar soluções diferentes para o mesmo problema, tendo resultados similares ou mesmo idênticos. E ainda, nos automóveis, esta ideia é bem válida.
Conhecemos inúmeros conceitos aplicados aos automóveis, para diversas de suas características. Existem carros de duas e quatro portas, que levam cinco passageiros da mesma forma (com mais ou menos dificuldade em embarcar e desembarcar, mas com o mesmo número de ocupantes). Existem carros com motor dianteiro, outros com motor traseiro, que também se movimentam da mesma forma. Já vimos carros elétricos, carros híbridos, a diesel, a álcool, a gasolina, até carros a vapor, e todos cumpriam o papel de mover pessoas e cargas.
Quando pensamos em desempenho e otimização, os conceitos começam a ficar um pouco mais interessantes. Fazer um carro se mover é uma coisa, todos os exemplos acima fazem isto, mas fazer ele se mover rápido e de forma consistente, eficiente, é outra, mas não impede que os projetistas tomem caminhos diferentes para chegar ao mesmo objetivo.
Vamos ver aqui um exemplo simples. Nos tempos modernos, um dos principais indicativos de desempenho de um carro esporte adotado pela imprensa e o público em geral é o tempo de volta no lendário circuito alemão de Nürburgring com seus 20,8 km de extensão.
Em determinado ponto da história, mais precisamente em 2010, dois carros completamente diferentes em termos de construção conseguiram praticamente o mesmo resultado. O Porsche 911 GT2 RS com seu motor boxer–6 traseiro e o Nissan GT-R, de motor V-6 dianteiro. Um foi feito na Alemanha seguindo conceitos tradicionais da marca por décadas, outro feito com a tecnologia embarcada japonesa de ponta, e o resultado neste quesito comparativo foi o mesmo. Os dois tiveram a melhor volta no tempo de 7min24s. Pode-se dizer que são carros equivalentes, disputam o mesmo mercado, mas seria coincidência que, em um período de tempo próximo, o Maserati MC12 e o Pagani Zonda terem feito os mesmos 7min24s?
Pensando em carros de corrida, podemos ver comportamentos muito parecidos. Na Fórmula 1 do passado, quando o regulamento técnico permitia uma infinidade de construções diferentes dos carros, era possível ver no grid carros completamente distintos.
Como um bom exemplo desta comparação, vamos pegar a temporada de 1974. As equipes de ponta eram Ferrari, McLaren, Tyrrell e Lotus. O Ferrari era equipado com motor de doze cilindros plano, enquanto que McLaren, Tyrrell e Lotus usavam o Cosworth V-8. A construção dos carros em essência era similar, mas tinham suas peculiaridades que os tornavam únicos. Um mais largo, outro mais baixo, com formatos diferentes de carroceria.
As quatro equipes venceram corridas, alguns fizeram voltas mais rápidas e pole positions. Para colocar ainda mais tempero na discussão, a Tyrrell, por exemplo, correu com três modelos diferentes de carros nesta temporada e a Lotus com dois modelos diferentes. Claro, há o fator humano dos pilotos, das condições de pista, etc., mas a rigor, os carros tinham chances parecidas de serem campeões. Também é fato que mínimos detalhes faziam um carro mais rápido que o outro em determinados circuitos, mas, a grosso modo, eram carros equivalentes.
Uma experiência pessoal sobre este tipo de “dualidade” na engenharia pode mostrar bem esta ideia, que foi recordada por esta clunada Nora aqui no AE. Nos tempos de faculdade, no começo dos anos 2000, eu fazia parte da equipe Milleage da FEI, que competia na Maratona da Eficiência Energética, a versão brasileira da Shell Eco-Marathon, que colocava à prova os protótipos feitos por alunos com objetivo de criar o carro mais econômico possível.
A FEI teve significante participação nesta competição ao longo dos anos, desde sua concepção, e com isso construiu diversos protótipos para as disputas anuais. A última participação, em 2006, contou com três protótipos, sendo dois para a categoria de carros equipados com motor a gasolina e outro para a categoria com motor elétrico.
Um dos mais importantes aspectos para esta competição que foca no mínimo consumo de combustível é o baixo peso dos carros. Tínhamos duas ideias distintas para a construção do carro, mas havia dúvida de qual seria mais leve, e ambas levavam materiais compósitos como base. Era difícil conseguir informações precisas para fazer os cálculos e estimar o peso do carro, pois as duas ideias pareciam ser similares.
Na dúvida, e também como forma de aprendizado, decidimos fazer um carro com cada conceito. Um seria fabricado como um monocoque (monobloco) de compósito de fibra de carbono e o outro carro seria feito com um chassi tubular de compósito do mesmo compósitoro. Conceitualmente, o monocoque serve como chassi e parte da carroceria, enquanto que o chassi tubular é puramente estrutural, como uma espinha dorsal, e teria uma carroceria independente.
A fabricação do carro monocoque foi feito com o uso de autoclave (forno pressurizado especial para esta fabricação) moldando a célula central em um grande molde a alta pressão e temperatura, com algumas camadas de tecido de fibra de carbono com insertos de honeycomb (malha em forma de colmeia de abelha) para reforços localizados.
O carro de chassi tubular foi feito com tubos de compósito de fibra de carbono colados com adesivo estrutural e unidos com peças metálicas. Era mesmo um esqueleto para o carro, que suportava todos os demais componentes.
A parte de suspensão era muito similar nos dois conceitos, logo pesavam praticamente a mesma coisa. O motor era o mesmo nos dois, assim como as rodas e pneus. O que haveria de diferença de peso seria realmente na carroceria e no chassi (ou monocoque).
A carroceria dos dois carros utilizava compósito de fibra de carbono ou Kevlar, a diferença é que uma delas era mais fina e mais leve pois não tinha função estrutural nenhuma, apenas carenar o chassi e criar o perfil aerodinâmico projetado.
Os dois conceitos foram fabricados em paralelo, muita coisa foi feita com base em estimativas pois era uma tecnologia diferente e com pouca informação estava disponível na época ao alcance de estudantes, fora do restrito mercado profissional que utiliza estes materiais. Ainda era muito caro trabalhar com fibra de carbono.
Quando os dois carros ficaram prontos, a balança já os esperava, e as apostas em qual teria ficado mais leve já estavam no ar. Eu havia apostado no chassi tubular como mais leve, mas a surpresa foi a mesma para todos. Os dois carros pesaram exatamente o mesmo! Cada um pesou 32,5 kg em ordem de marcha.
O objetivo era fabricar o carro mais leve possível, sem perder a função de rigidez e segurança, e por caminhos distintos, chegamos no mesmo resultado. Um carro feito em monocoque de fibra de carbono e outro feito com tubos de fibra de carbono, alumínio e carroceria de Kevlar, pesavam exatamente a mesma coisa.
Depois dos carros prontos, conhecemos como cada um ficou e quais pontos poderiam ser melhorados para ficarem ainda mais leves. Neste caso, acredito que seria possível fazer um mais leve que o outro, e possivelmente o monocoque seria mais fácil de ser otimizado, pois ficou mais rígido. Era uma tecnologia nova para nós, sem conhecimento prévio, e depois dos primeiros prontos, já teríamos uma base para saber onde melhorar.
Este caso acaba sendo parecido com a evolução natural dos carros de corrida de ponta, como protótipos e carros de fórmula, que nasceram há muitos anos atrás com estruturas feitas na forma de chassi tubular, depois ganharam as construções com reforços de chapas e acabaram nos monocoques de compósito.
Quando não há regras e limitações que impõem quais as soluções devem ser utilizadas, a evolução natural dos desenvolvimentos podem tender a convergir para um mesmo caminho, como acontece na F-1 atual em que todos os estudo de túnel de vento deixam os carros muito parecidos, ou ainda os caminhos diferentes convergem para o resultado comum, como no exemplo da temporada de 1974.
Existe um termo em alemão que nos foi ensinado pelo colega e colunista do AE, Alexander Gromow, que explica essa convergência; Zeitgeist, espírito do tempo.
Ele faz parte da magia da engenharia.
MB