No círculo do automobilismo, o nome Jean Todt é conhecido e respeitado em todos os lugares. A capacidade de gerenciamento do francês é incrível, sua história nas pistas não me deixa mentir. O que muitas vezes acaba sendo pouco lembrado é seu tempo pré-Ferrari, quando teve marcante passagem pela Peugeot, mas, antes do sucesso como gestor, Todt teve em seu currículo passagens dentro das pistas.
Muitos dos nomes fortes das principais equipes do mundo começaram de alguma forma dentro das pistas, e com Jean Todt não foi diferente. De fato, seu interesse por corridas o colocou em contato direto com as máquinas, mas também com as pessoas envolvidas na direção dos eventos, rumo este que sua atual carreira é dedicada.
Assim como o começo da carreira de Jean Todt dentro dos carros de corrida, um outro Ford também é pouco conhecido. Este, um pequeno GT de dois lugares com suaves linhas de carroceria, motor central e desenvolvido para as pistas. Não, não estamos falando do GT40, mas de seu irmão mais novo (e menos bem sucedido), o GT70.
QUEM TROUXE O GT70 À VIDA
Diferente do lendário GT40, nascido unicamente com o propósito de esmagar o orgulho italiano de Enzo Ferrari, o pequeno Ford dos anos 70 foi criado para disputar o Campeonato Mundial de Rali. Para mundos totalmente opostos, as acidentadas pistas de rali e o asfalto liso para altas velocidades em Le Mans, estes ambientes geraram carros bem distintos.
Assim como os propósitos eram diferentes entre GT40 e GT70, os orçamentos também. Enquanto que Carroll Shelby praticamente teve um talão de cheque inteiro em branco assinado, o desenvolvimento do GT70 foi limitado e também controverso. Se algum outro italiano tivesse ofendido Henry Ford II nas pistas de rali, talvez o GT70 tivesse recebido mais investimentos, mas, não foi o caso.
O departamento de competições da Ford na Europa, com sede na Inglaterra, estava trabalhando no desenvolvimento do Escort da primeira geração para as provas de rali. Por um tempo, o Escort foi competitivo, mas, a concorrência evoluiu e pequeno Ford não era mais tão forte frente ao Porsche 911S e ao Alpine A110.
Clark Roger era o principal piloto da equipe e tinha bastante interação com Stuart Turner, o diretor de competições da Ford Europa. Vendo o andamento das corridas e como o Escort sofria para andar junto com os rivais, especialmente depois do Rali de Monte Carlo de 1970, algo diferente tinha que ser feito. Algo como os designs mais modernos da época, sem o motor dianteiro convencional do Escort.
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Da mesma forma que Turner se preocupava com o progresso dos Fords no Mundial de Rali, Jochen Neerpasch, gerente de competições da Ford Alemanha, queria ver resultados melhores para o grupo. Ambos trabalhavam em conjunto nas atividades de motorsport da Ford Europa.
Depois dos investimentos astronômicos no GT40, seria difícil conseguir verba para um grande projeto, ainda mais para disputar provas de rali na Europa, onde a Ford EUA não tinha o menor interesse. Com a determinação de Turner em ter um novo carro capaz de trazer vitórias para a Ford, ele e Roger recorreram ao alto escalão da empresa na Inglaterra.
Em negociação direta com Walter Hayes, então vice-presidente de Relações Públicas da Ford Europa, a dupla conseguiu convencê-lo a investir em um projeto para as pistas de rali. Não seria a mesma coisa do investimento feito no GT anti-Ferrari, mas, um novo carro poderia nascer com objetivo definido.
O novo carro poderia ser desenvolvido com o foco no campeonato de rali, mas Hayes já tinha a visão de que se bem-sucedido, o projeto poderia virar um modelo de produção e vendido ao público. A Ford ainda vinha no embalo do sucesso do GT40 para trazer alma esportiva aos seus produtos, puxando a ligação com as vitórias nas pistas.
A unidade de Boreham, fábrica Ford em Essex que concentrava a fabricação e base da equipe de rali da marca no Velho Continente, seria o berço para o desenvolvimento do projeto. Neste mesmo lugar posteriormente muitos sucesso da marca seriam criados.
Para liderar o projeto, o nome escolhido foi Len Bailey, um dos envolvidos na criação do GT40 pelo lado da Ford (lembrando que foi um projeto liderado por Shelby e sua equipe, mas a Ford tinha seus homens dentro do time). Bailey e Turner tinham a missão de entregar um carro competitivo, o que normalmente significa bastante investimento, mas Hayes era experiente e deu algumas diretrizes. Deveriam utilizar o máximo de componentes existente dentro da Ford para evitar novos gastos, e o resultado final deveria ser versátil o bastante para o uso “civil” caso o carro fosse bem sucedido.
Contar com o apoio do Hayes foi fundamental. Ele já havia participado do programa GT40 diretamente com Henry Ford II, em paralelo foi um nome chave para a criação dos motores DFV Cosworth para a F-1. Foi ele, ainda jornalista, quem fez o meio de campo entre a Cosworth, a Ford e a Lotus para a criação dos DFV e outros projetos como o Lotus Cortina, que era um Ford preparado por Colin Chapman. De fato, Hayes sabia negociar e entregar resultados.
Para que o resultado fosse o mais certeiro possível, Bailey contou com nomes do rali como os finlandeses Hannu Mikkola e Timo Mäkinen, além do próprio Clark Roger. Ter grandes pilotos de rali ajudando a criar um carro de rali era uma boa receita para chegar ao sucesso, afinal, eles quem iriam desfrutar do resultado do projeto.
O FORD GT70
Com o projeto iniciado, a configuração do carro já estava definida logo cedo: GT de dois lugares e motor central. Deveria ser uma receita mais favorável do que a de motor traseiro do 911 e do Alpine A110, o primo francês do nosso Willys Interlagos brasileiro. A versatilidade solicitada por Hayes viria da possiblidade de utilizar diferentes motores no mesmo chassi.
O projeto ganhou o nome de GT70, em alusão ao ano de sua criação, 1970. Diferente do irmão mais velho, que contava com um potente V-8 de mais de 450 cv, o pequeno GT teria motores mais humildes, e europeus. A primeira opção foi o V-6 do Ford Capri RS2600, este um motor da família Cologne da Ford Europa, fabricado na Alemanha e preparado pela Weslake na Inglaterra, a mesma empresa que fabricou motores para a Fórmula 1 nos anos 1960.
Como ordenado por Hayes e apoiado por Stuart Turner, o projeto deveria comportar mais de uma opção de motor para aumentar a versatilidade e também direcionar custos conforme necessidade. A segunda opção seria o quatro-cilindros feito pela Cosworth chamado BDA (BD de belt-driven, correia dentada, e A, a série do motor). Este, um compacto 1,6-litro de duplo comando no cabeçote, era um sucesso na Europa, equipando diversos carros vencedores em várias categorias, do Turismo aos Fórmula 2. Algumas variações de transmissão também foram consideradas, mas, a mais positiva foi o transeixo ZF já conhecido e usado no GT40.
Para assegurar que o carro fosse leve, primordial para provas de rali que exigem mudanças de trajetória com grande agilidade, a carroceria do GT70 seria fabricada em compósito de fibra de vidro, e o desenho foi assinado por Ercole Spada, designer italiano com bom histórico. Ele já havia trabalhado em projetos com a Aston Martin e Alfa Romeo em versões especiais da Zagato e no Lancia Fulvia. Recém-contratado para trabalhar no estúdio Ghia, parte da Ford na época, recebeu a missão de desenhar o novo GT.
A compacta carroceria de plástico reforçado com fibra de vidro e a construção mesclada com chassi de aço conseguiram manter o peso baixo, apenas 765 kg. Na suspensão e direção, muitos componentes do Ford-Lotus Cortina foram usados. Muitos testes foram feitos em Boreham, o carro parecia promissor, mas, a prova definitiva seria nos circuitos de rali da Europa.
NAS PISTAS E NO SALÃO DO AUTOMÓVEL
Apenas seis carros acabaram sendo fabricados, de um total de 500 que seria a previsão inicial para chegar à quantidade mínima requerida para homologação. Destes, um deles foi preparado para ser apresentado no Salão de Turim de 1971 como um carro-conceito, usando uma carroceria diferente, desenhada por Filippo Sapino no estúdio Ghia. Sapino teve passagem pela Pininfarina e viria a se tornar diretor de design na Ghia pouco tempo depois.
A proposta de mostrar o GT70 como um conceito em 1971 estava baseada na ideia de fabricar o carro em série, se bem sucedido no Mundial de Rali. Este carro em especial não era funcional. Apenas servia para apresentações estáticas, com destaque para o visual arrojado.
No entanto, para a tristeza de Hayes, Turner e Bailey, o histórico na pista não foi tão bem-sucedido como esperado. Dos seis carros feitos, um foi usado como carro-conceito, outro usado apenas em testes de desenvolvimento, um terceiro como carro para demonstrações à imprensa e três foram para as pistas, inicialmente equipados com o V-6 do Capri. O carro em ritmo de corrida torcia demais, o motor era alto e pesado, mesmo sendo potente, prejudicava o equilíbrio do carro.
O primeiro rali disputado pelo GT70 foi na França em 1971. Roger Clark foi o piloto, mas teve tantos problemas que não passou nem perto de ter um bom resultado. O motor Cologne não aguentou, assim como os freios e a suspensão. Clark logo viu que o projeto tinha problemas.
Um desses três carros de corrida que teve mais tempo de pista foi modificado pela equipe da Ford na França, substituindo o V-6 pelo BDA, mais leve e compacto, e o transeixo alemão ZF trocado por um Hewland inglês. Foi uma boa melhora. Mesmo mais fraco que o Cologne, o Cosworth compensava a menor potência por suas dimensões mais compactas e menor peso, aprimorando bem o equilíbrio do carro. Ainda não era um sucesso, mas estava em um caminho melhor.
E ONDE JEAN TODT ENTRA NESSA?
O segundo carro a entrar nas disputas do rali foi pilotado por François Mazet, um francês com bom histórico em provas de monopostos. Ele havia sido campeão da Fórmula 3 francesa em 1969, teve passagens na Fórmula 2 e disputou o GP da França de F-1 em 1971 pela equipe de Jo Siffert, guiando um March.
Mazet correria com o GT70 com apoio do time da Ford Europa no Rali Tour da França de 1971. Era um dos principais eventos de rali no país. Ao seu lado, como copiloto, outro francês. Era Jean Todt. O mesmo Jean Todt que traria diversos campeonatos mundiais na F-1 para a Ferrari.
Todt começou sua carreira dentro das pistas como piloto, com um Mini Cooper emprestado de familiares. Deve ter percebido que pilotar não era seu forte, mas que gostava de estar dentro do carro. Passou a atuar como copiloto em provas que exigiam dois ocupantes no carro, e descobriu-se bom nesta função.
Como comprovado posteriormente como dirigente de equipe, as qualidades de rápido pensamento, cálculos e definição de estratégias de corrida fizeram dele um bom copiloto. Teve a oportunidade de correr junto com grandes nomes do rali como Jean-François Piot e Jean-Claude Andruet.
As qualidades técnicas de Todt junto com o arrojo de Mazet estavam dando resultado no Tour da França. O carro ia bem, conseguia rivalizar com os 911, mas a felicidade acabou quando o Mazet não pode evitar uma colisão com a mureta de uma ponte. Era o fim da linha pro GT70 prata de placa OVW 870 K.
O envolvimento dele com o GT70, se visto apenas como uma corrida malsucedida, não teria praticamente nenhuma relevância, mas, podemos apostar que o desempenho que tiveram enquanto o carro andou, e o fato de terem apostado em um projeto novo, ainda em fase de aprimoramento, ficaram no seu currículo. Ele e Mazet acreditaram no GT70 e o colocaram à prova.
O desempenho de Todt como copiloto, não só nas suas participações anteriores, mas também no Tour da França com o Ford, colocou-o junto com outros grandes nomes do rali, como Hannu Mikkola, Timo Mäkinen e Guy Fréquelin. Com estes pilotos, teve contato com as equipes Peugeot e Talbot, as quais se uniriam e Todt viria a assumir o comando do time de competições em 1982, trazendo para a marca francesas grandes conquistas como dois títulos Mundiais de Rali, duas 24 Horas de Le Mans e quatro vitórias no Paris-Dakar.
Falta de sucesso pode ser uma boa expressão para designar como foram os resultados do GT70, mas nem por isso, o modelo passou desapercebido no mundo do rali. O fato de ser um carro feito especialmente para as competições, por si só, já atrai os olhares de todos.
No caso de Jean Todt, mesmo não tendo um bom resultado com o GT70, ele estava junto no meio dos holofotes do novo GT da Ford. Exposição é sempre bem-vinda, ainda mais no caso dele, jovem e com ótimo histórico. Podem apostar que os dirigentes da Peugeot também estavam de olho no GT, e viram que mesmo com um carro inferior, Todt e Mazet fizeram o possível enquanto o carro andou.
O FIM DO GT70
Além dos fracos resultados nos ralis, uma mudança no regulamento do campeonato prejudicaria ainda mais o desempenho do GT70. Era mais vantajoso para a Ford investir forte novamente no Escort e em carros similares, como o Capri que já estava pronto.
O custo dos GTs era muito elevado. Um GT70, se comercializado, seria vendido mais que três vezes mais caro que um Escort RS1600. A complexidade de produzir um carro em números limitados como deste projeto não justificariam o investimento, especialmente por não ter tido sucesso nas pistas, que era uma das premissas para fabricação.
O golpe de misericórdia no GT70 foi em 1973, quando a grande crise do petróleo mundial acabou com os planos de novos investimentos em praticamente todos os segmentos automobilísticos, em especial, em automobilismo e competições. E, para piorar a situação, uma greve geral dos trabalhadores suspendeu a produção na fábrica da Ford por dois meses, derrubando o capital de giro da empresa, obrigando diversos cortes de gastos, e o GT70 estava no topo da lista.
Mesmo com os esforços de gente do alto escalão da Ford, como Walter Hayes, o pequeno GT não sobreviveria ao caos que a indústria estava passando. Era sabido que carros de corrida criados por grandes fabricantes precisavam de bons motivos para se manterem vivos, como foram os anos do GT40, até Henry Ford II sentir que já tinha acabado com o orgulho do Comendador Ferrari.
Com o cancelamento do programa, dos poucos carros que haviam sido concluídos apenas um ficou circulando e posteriormente foi restaurado nas cores da equipe francesa que mais utilizou o carro.
Este não foi o último GT da Ford antes da recriação do GT40 nos anos 2000, mas foi um dos últimos grandes investimentos de um novo produto para o mundo do rali. Só o RS200 viria depois, mas este é outro caso futuro.
MB