É patente que o carro elétrico não é a novidade que se quer fazer crer. Já existiram nas duas décadas iniciais do século 20, disputaram mercado de igual para igual com os carros de motor a combustão interna. Mas sucumbiram a estes a partir da terceira década unicamente por questão de praticidade, combinada com o advento do motor de partida — elétrico — que pôs fim ao penoso e sobretudo perigoso trabalho de acionar o virabrequim com uma manivela iniciando o ciclo de trabalho do motor de combustão interna para que funcionasse.
O presente século, especialmente a segunda década, viu o ressurgimento em massa do carro elétrico graças principalmente à evolução das baterias de íons de lítio e suas variações, mas também impulsionado pela guerra ao dióxido de carbono, mais conhecido pela sua representação química CO2 , um dos gases causadores do efeito estufa tido como responsável pelo aumento da temperatura média da Terra que estaria levando às mudanças climáticas. Mas não me alongarei nessa questão.
Com toda esse cenário de eletrificação acelerada o que se viu foi fabricantes dizendo que se concentrariam nos carros de maior valor agregado, isto é, mais caros e de maior lucratividade, deixando de produzir aqueles mais acessíveis às classes sociais A e B. Sempre achei estranha essa postura, típica de “não combinar com os russos”, nas palavras do saudoso craque Mané Garricha ante uma sugestão de tática do técnico da Seleção, Vicente Feola, outra pessoa que já nos deixou com saudade: “Combinou com os russos?” A indústria automobilística combinou com o mercado? Não combinou.
Mas os fabricantes estão começando a “jogar a toalha”, perceptível neste editorial de Mark Tisshaw, editor da revista inglesa Autocar, a mais antiga revista de automóveis do mundo (1895).
O que Mark Tisshaw escreveu
“Para muitas pessoas, os carros são essenciais. Eles proporcionam transporte seguro e confiável e permitem liberdade de mobilidade.
A maioria dos fabricantes de carros convencionais entende isso. Quaisquer que sejam suas aspirações de se tornarem mais premium e mais sofisticadas, eles ainda reconhecem a necessidade de oferecer acesso à sua marca. É por isso que existem carros urbanos e superminis, para permitir aos compradores meios acessíveis para a propriedade de um carro novo e todos os benefícios de segurança e emissões que isso traz.
Nos últimos meses, muitas vozes importantes e poderosas da indústria lamentaram a introdução das próximas normas de emissões Euro 7 como uma forma de forçar a saída de carros pequenos para sempre e com o aumento da (tão cara) eletrificação, improvável retornar. A maior esperança, que está em discussão, é que os segmentos A e B se fundam, e um preço de cerca de € 20.000 (£ 17.200) seja considerado.
A Ford é uma empresa que parece ausente da discussão. Ela parece estar desistindo da sua posição de liderança de mercado com carros pequenos como o Fiesta e estão apostando tudo em carros elétricos. O que é bom, mas ainda não vimos uma concessão à acessibilidade, e a mudança para a eletricidade exige tato para explicar aos clientes por que o conteúdo e o preço dos carros num showroom não é o que sempre foi (a Ford desaprovou o Euro 7, mas no contexto de desviar recursos da eletrificação. Um ponto justo.)
O posicionamento do homem comum da Ford no mercado deve ser adotado e protegido, e não deixado morrer. A mudança para a eletrificação é algo que se pode abraçar, mas apreciá-lo é um debate difícil e uma mudança que deixa muita coisa para trás.
A empresa inventou a própria ideia do acesso da pessoa comum à mobilidade. Quando ficou claro que o Modelo T seria um sucesso, Henry Ford reduziu mais o preço para torná-lo ainda mais acessível. Quando o Fiesta parar de ser vendido o Ford mais barato será o Puma, que custa pouco menos de £ 25.000. Os problemas de lucratividade da Ford com carros menores e mais acessíveis na Europa são bem conhecidos, mas abandoná-los todos juntos — e tão longe de 2030 — parece uma saída fácil e contra o próprio espírito no qual a empresa foi fundada em 1908.
No entanto, existem muitas fabricantes dispostas a participar do debate. O chefe da Kia do Reino Unido, Paul Philpott, foi emfático ao dizer: ‘vamos manter o Picanto (foto de abertura) com um motor de 1 litro em uso o máximo que pudermos para dar às pessoas esse ponto de acesso à propriedade de um carro novo. Temos absolutamente a intenção de permanecer como um fabricante de linha completa.’
‘Se isso significa mantê-lo nessa faixa até o banimento de 2030 para carros com motor de combustão interna, que assim seja. Mesmo que a inflação mantenha o preço de venda subindo (£ 13.400 atualmente no caso do Picanto), a meta é manter as prestações mensais baixas com bons valores residuais.’
‘O importante é o pagamento mensal que as pessoas possam pagar’, disse Philpott, embora admita que o aumento das taxas de juros significa que ‘os dias de taxas 0%, 1,9%” para carros novos acabaram.
O segmento de carros urbanos no Reino Unido consiste agora do Picanto e do intimamente relacionado Hyundai i10. O Toyota Aygo X é uma oferta um pouco diferente, transformando-se num minicrossover, mas não menos admirável na sua missão: ainda que a legislação esteja efetivamente tentando tirar das ruas carros como este, a Toyota sabe que tem a responsabilidade social e moral de continuar oferecendo carros novos acessíveis pelo maior tempo possível.
A Dacia é uma empresa que construiu todo o seu negócio na oferta de carros acessíveis (e continua), e o mercado está caminhando para isso. O chefe Denis le Vot está preparado para competir de igual para igual com o Euro NCAP na dedução de estrelas de classificação de segurança — e, portanto, potencialmente causando problemas de reputação para fabricantes de automóveis com carros “inseguros”— ao não introduzir tecnologia de segurança ativa. ‘Não lhe vendemos assistente de manutenção de faixa, pois sabemos que pode ser desativado’, diz ele.
Le Vot é outro que prometeu passar a elétrico apenas no último momento possível, já que os carros devem permanecer acessíveis.
Muitos outros também entendem assim. O cada vez mais poderoso e influente chefe da VW, Thomas Schafer, riu da opinião da Comissão Europeia de que o EU7 seria ‘acessível’ ao adicionar cerca de € 300 ao preço dos carros novos. Ele acha que está mais para € 5.000, prevendo o fim do Polo como resultado. A volta da VW a esse segmento será elétrica, e a meta é fazer com que ela custe o mesmo que o Polo atual — um grande desafio com o maior custo das baterias.
Há também o sempre citável chefe da Stellantis, Carlos Tavares, que prevê que “haverá desconforto social” a menos que os políticos percebam que a decisão política (uma que ele chama de “dogmática e ingênua”) de mudar para o elétrico é simplesmente deixar as classes médias fora dos carros novos, bem como levar à suspensão do desenvolvimento de modelos com motor de combustão interna ainda mais limpos ou mais eficientes que os de hoje, como carros novos que eles possam pagar.
Não houve promessa da Ford de manter um carro acessível à venda pelo maior tempo possível, como Kia, Hyundai, Dacia ou Toyota, ou declarações como as de Schafer e Tavares que pelo menos sugerem a inquietação com as decisões dos legisladores que está fazendo o preço dos carros novos disparar.
Pelo menos na Europa, a Ford está abandonando diretamente seu princípio orientador mais importante e original de 119 anos — enquanto outros com visão mais clara lutam para mantê-lo vivo. É uma jogada ousada.
Mark Tisshaw
Editor”
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