O motor VW boxer, de quatro cilindros opostos arrefecido a ar, a quatro tempos, concebido por Ferdinand Porsche e sua incrível equipe de engenheiros, inicialmente para o VW Fusca, tem uma história pontilhada de sucessos. Desde os primeiros estudos, feitos na década de 30, até a apresentação do protótipo “final” em 1938 foram feitas várias tentativas. Apresentamos aqui alguns dados para informação e reflexão sobre este motor que deixou as linhas de produção em série em nível mundial no Brasil em 23 de dezembro de 2005.
Este motor propulsionou VW Fusca, VW Kombi, VW Karmann-Ghia, VW SP2, VW Brasília, e assim por diante. Produzido muitos milhões de vezes este motor é o elo que une fãs fervorosos destes carros em volta do mundo.
Já em sua minuciosa descrição da construção de um “carro do povo alemão”, de 17 de janeiro de 1934, Porsche vislumbrou as possíveis alternativas para o motor deste veículo popular.
Um dos pontos mais importantes deste documento foi a descrição do motor. Sob esta palavra-chave Porsche escreveu, em alemão que apenas os engenheiros poderiam entender, como ele imaginou a unidade motriz:
“Ou um motor quatro-tempos de quatro cilindros horizontais e opostos arrefecido ar ou um motor dois-tempos radial de três cilindros arrefecido a ar. Ventilador de arrefecimento no eixo auxiliar elevado no arranjo de quatro cilindros opostos. Ventilador combinado de arrefecimento e exaustão no virabrequim no arranjo em estrela”.
Ou seja, Porsche tinha deixado um motor boxer ou um motor radial como alternativas para o “seu” carro popular.
Não se tem notícia se a alternativa radial de três cilindros passou do estágio de conjecturas iniciais, o que sobrou foi um esboço grosseiro raramente visto nos livros, que reproduzo abaixo:
Os trabalhos de desenvolvimento do motor para o Volkswagen foram fortemente pressionados pelo preço final para o carro de 900 marcos da época, definido/imposto pelo Führer. Apesar de ser consenso que este valor era praticamente impossível de se atingir, os trabalhos seguiam com ele em vista. Esta condicionante foi uma das causas do atraso que o projeto do VW Fusca acabou tendo.
Inicialmente, divergindo de suas conjecturas iniciais, Porsche tinha a ideia firme de usar um motor a dois tempos, e investiu tempo e verba do orçamento no seu desenvolvimento:
O motor favorito de Porsche, o motor Doppelkolben (pistão duplo) a dois tempos, é um design de dois cilindros arrefecidos a ar onde dois pistões conjugados pelo mesmo moente do virabrequim, em movimento levemente defasado, correm em cilindros paralelos, como mostra a animação abaixo:
Um pistão está no lado de entrada e o outro no lado de escapamento, atuando como um pistão de bomba para a expulsão dos gases de escapamento. A principal vantagem desse arranjo foi a segregação mais eficiente da mistura de entrada e dos gases de escapamento, portanto, uma combustão mais eficiente. A falha deste tipo de motor era o superaquecimento do pistão de escapamento pelos gases queimados e o fato de o ventilador montado lateralmente que provou ser menos eficiente do que o arrefecimento pelas correntes de ar externas — havia uma carenagem do motor levando o fluxo de ar do ventilador para os cilindros que não aparece na foto acima. Cada par de pistões compartilhava um moente de virabrequim comum. O superaquecimento não permitia a manutenção da velocidade de cruzeiro desejada e levava à frequentes quebras.
O grande objeto cilíndrico à direita na foto mais acima é um gerador e motor de partida combinados que em teoria seria uma solução econômica. A foto inserida no canto superior direito mostra o motor Doppelkolben totalmente montado.”
Antes de descartar o Doppelkolben Motor foram feitos estudos de várias de suas alternativas, mas não se conseguiu um resultado satisfatório; se bem que a partir de 1936 este princípio funcionou bem nas motos Puch austríacas.
Outro aspecto que atuou contra a escolha de um motor a dois tempos era a falta de freio-motor que implicaria num sistema de freios mais reforçado, que na época ficaria fora do apertado orçamento do preço final do carro.
A ordem era economizar e o próximo motor a ser pesquisado foi um motor boxer de dois cilindros, a quatro tempos, arrefecido a ar, dois carburadores. Este motor também foi descartado, pois tinha pouca flexibilidade:
A estas alturas a alternativa de motor boxer de quatro cilindros, também arrefecida a ar, entrou em estudo. Abaixo o motor boxer de quatro cilindros de 1936 que é o ancestral de todos os motores do VW Fusca. Com cilindrada de 985 cm³ (70 x 64 mm), o motor produzia 23,5 cv. Esta versão tinha uma entrada de admissão por cilindro, mas ainda não tinha radiador de óleo:
Em 1937, o motor boxer foi desenvolvido mais um pouco, recebeu uma nova carcaça e um radiador de óleo, criação de Franz Xaver Reimspiess — que equacionou o problema de superaquecimento, em especial do cilindro 3. As duas entradas de admissão foram mantidas nesta versão — o que implicaria num coletor de admissão duplo de custo maior (porém era uma solução técnica avançada que seria retomada anos depois):
Finalmente, ainda em 1937, chegou-se à versão definitiva do motor que iria equipar os primeiros VW Fuscas, que na época eram chamados de KdF pelo III Reich, e o detalhe foi que ele passou a ser de entrada única:
O motor boxer desenvolvido por Reimspiess de 4 cilindros, com a adição do radiador de óleo semelhante ao instalado em suas contrapartes mais modernas. De fato, o motor diferia surpreendentemente pouco daquele conhecido nos anos vindouros por milhões de proprietários de VW Fuscas em todo o mundo.
Cada par de cilindros, com seu cabeçote destacável, está em duas bancadas, com cada par na horizontal em cada lado do virabrequim.
Cada par de cilindros opostos com seus pistões e bielas, ligeiramente deslocados entre si, aciona o virabrequim. Este tem três mancais principais com quatro manivelas individuais. O projeto emprega válvulas nos cabeçotes acionadas por hastes e balancins. Os tubos inclinados abaixo dos cabeçotes dos cilindros são as capas das hastes que levam o movimento dos ressaltos da árvore de comando de válvulas localizada sob o virabrequim acionada por este mediante um par de engrenagens helicoidais.
O layout do sistema de arrefecimento permaneceu o mesmo até os últimos motores fabricados, e consiste na polia da correia trapezoidal do gerador e da turbina coaxiais, polia esta, montada na extremidade do virabrequim. O gerador, por sua vez, é montado num pedestal integrado à metade direita da carcaça do motor. A turbina de arrefecimento, os cilindros e os cabeçotes de liga leve estão envoltos por uma carenagem metálica. Quando o motor está em funcionamento, a turbina faz circular uma forte corrente de ar ao redor dos cilindros e cabeçotes amplamente aletados.
O arrefecimento funciona da mesma maneira que em uma motocicleta, que é praticamente o que um motor VW é, exceto pela corrente de ar produzida artificialmente pela turbina e sua carenagem, e que é, por sua vez, fornecida por meios mais naturais em uma motocicleta quando ela está em movimento. O arrefecimento do motor Volkswagen se mostrou um tanto inadequado nos protótipos. Embora o motor tenha sido projetado para funcionar em rotações comparativamente baixas para evitar o esforço excessivo e, assim, obter uma vida útil mais longa (de fato, um dos principais motivos de sua renomada longevidade), ele ainda era propenso ao superaquecimento, o que levou à abertura das horrendas venezianas na parte de trás dos protótipos. Como vemos no exemplo abaixo:
A adição de um radiador de óleo em 1937, a instalação de entradas de ar mais convenientes e mais harmoniosas, além de outras modificações na turbina reduzindo a dependência de correntes de ar externas, permitiu a introdução das duas janelinhas traseiras na série VW38, que representou o protótipo definitivo do VW Fusca.
Como grande parte das soluções do projeto do Volkswagen, o motor de cilindros horizontais e oposto já havia sido bem testado por terceiros. Já em 1897, Karl Benz havia construído tal projeto. E Porsche participou deste trabalho enquanto trabalhou na Daimler Motoren, no caso era um motor boxer arrefecido a ar para aviões.
Em 1924, a BMW equipava uma motocicleta com um motor boxer de dois cilindros montado longitudinalmente no quadro. Este motor foi finalmente produzido por um certo Herr Fritz que saiu da Daimler Motoren e foi para a BMW, e o design resultante pode ser visto ainda hoje.
Em 1928, Hans Ledwinka, da Tatra, apresentou sua versão de 4 cilindros e 1,5 litro. E, mesmo quando Porsche e sua equipe ainda estavam desenvolvendo o seu protótipo, Martin Stolle desenvolveu um excelente exemplar para a quase falida ‘NAG’ (National Automobil-Gesellschaft). E a Jowet Cars, da Inglaterra, usava um motor boxer, com seu layout horizontal, em seus pequenos carros leves. O que mostra que o motor boxer já era uma realidade naqueles tempos.
Mas foi o motor de Reimspiess que acabou se tornando o mais renomado de seu tipo, atingindo um número gigantesco de unidades fabricadas com total sucesso!
AG
Para esta matéria foram feitas pesquisas nos livros: Die Käfer-Chronik de Dr. Bernd Wiersch, The VW Beetle de Robin Fry e Der Käfer II de Hans-Rüdiger Etzold, anotações do autor e pesquisas na Wikipedia.
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