Em matéria recente (https://autoentusiastas.com.br/2024/10/o-memoravel-lancamento-para-a-imprensa-do-vw-kombi-com-motor-arrefec), no relato feito pelo Eduardo Pincigher, são citados “carros estranhos feitos pela Engenharia: o Kombi picape que tinha a caçamba na parte dianteira e a cabine na traseira.”
Na verdade o que o Eduardo citou foi a versão brasileira do Plattenwagen, tipo de veículo construído pelo pessoal da Fábrica de Wolfsburg para movimentação interna de cargas atendendo as necessidades da fabricação de veículos.
Como surgiram os Plattenwagen
O ano era 1946, a Alemanha tinha sido derrotada na II Guerra Mundial e a fábrica estava sob o comando das forças de ocupação britânicas, com a destacada liderança do jovem, brilhante e impetuoso Major Ivan Hirst.
Um pouco de contexto histórico: no início da II Guerra Mundial, em 3 de setembro de 1939, a Fábrica de Fallersleben (depois da guerra Wolfsburg) que ainda estava em construção, mas já estava apta a fabricar veículos, foi requisitada pela Luftwaffe (Força Aérea Alemã) durante a guerra para produzir componentes de aviões e a temida bomba voadora V1, além de outros itens bélicos, como minas terrestres, tornando-se um alvo estratégico para os Aliados, isto causando os pesados bombardeios sofridos pela fábrica.
Voltando a 1946, mesmo com a demolição iminente — conforme decisão de um comitê responsável por decidir o que seria reconstruído e o que não, o determinado Hirst ordenou a limpeza dos escombros da fábrica — pois como admirador da tecnologia alemã mesmo antes da Guerra, ele não aceitava a ordem de demolição.
Para isso, ele convocou um destacamento de transporte do exército britânico para ajudar nos esforços de recuperação. Os ingleses chegaram a instalar uma linha férrea provisória para facilitar a remoção da gigantesca quantidade de entulhos. Esta miniferrovia, que havia sido utilizada na construção das Autobahnen (Autoestradas Federais Alemãs), foi trazida pela equipe motomecanizada de transporte para dentro da fábrica, agilizando os trabalhos.
O Batalhão motomecanizado não só limpou os destroços, como também fechou as crateras das bombas aliadas que caíram entre a fábrica e o Canal Mittelland¹. Com o tempo, eles passaram a auxiliar no transporte interno da fábrica, que era deficiente devido à falta de equipamentos adequados, tornando-se parte ativa das rotinas de fabricação.
Além disso, ajudaram a retornar as máquinas que haviam sido removidas para abrigos subterrâneos seguros na região, quando a situação ficou difícil para os alemães perto do fim da guerra, recompondo assim o parque de máquinas da fábrica.
O batalhão de transporte tornou-se essencial para a fábrica, que começava a produzir veículos no pós-guerra e enfrentava a falta de equipamento de transporte interno – uma lacuna que o batalhão também preenchia. A produção, assim, continuava possível. Várias áreas de fabricação ainda estavam sem teto que haviam sido destruídos nos bombardeios.
Contudo, o plano de retirada das tropas de ocupação para seus países de origem resultou na saída desse batalhão de transporte que estava na Fábrica de Fallersleben no final de 1946, ameaçando provocar o caos na mobilidade interna da fábrica. Sem transporte, a fábrica pararia.
Sem recursos para adquirir equipamento de transporte interno, surgiu uma solução temporária, criada por Rudolf Riegel: o Plattenwagen — literalmente, um veículo-plataforma.
Os primeiros veículos-plataforma eram compostos por componentes de Kübelwagen restantes, no caso o chassi de tubo central encurtado e suspensão traseira com componentes de Fusca, no caso suspensão dianteira e motor. Uma plataforma de carga e um banco para motorista e passageiro foram colocado sobre o chassi e o motor traseiro, respectivamente, no início sem proteção contra intempéries para motorista e acompanhante. Tinha até indicadores de direção semafóricos tipo bananinhas.
Como os veículos eram feitos à mão na época, sempre havia certas variações nas dimensões. Nos registros a distância entre eixos era de 1.900 mm. A plataforma de carga tinha 1.600 mm de largura e 1.,940 mm de comprimento. Entre as características do Plattenwagen estava o pequeno diâmetro mínimo de giro — sete metros, ideal para manobras nas instalações internas da fábrica.
Depois este veículo recebeu uma cobertura para motorista e passageiro. Ele trabalhava em conjunto com as empilhadeiras. No Brasil também foram usados veículos semelhantes que já faziam parte das rotinas de fabricação de vários componentes, rotinas estas que eram aplicadas na Alemanha e acabaram sendo introduzidas aqui também.
Os Plattenwagens, que foram usados até a década de 1990 na Alemanha, eram normalmente sucateados pois o seu valor histórico não era reconhecido, mas isto mudou com o tempo, tanto que o exemplar de 1973 abaixo acabou sendo preservado:
A criatividade do pessoal da fábrica não parou nos Plattenwagens, e a mecânica do VW Fusca era “pau pra toda obra” como mostra o VW Fusca abaixo, que foi encurtado e transformado num trator de fábrica que no caso puxava carretinhas com motores prontos:
Um Plattenwagen 1946 “zero-km”
Conta a lenda que o único Plattenwagen de primeira geração sobrevivente está numa coleção particular nos Estados Unidos. Pois bem, o pessoal da Volkswagen Nutzfahrzeuge Oldtimer (carros históricos da VW Veículos Comerciais) decidiu construir uma réplica fiel dos primeiros Plattenwagens que ficou pronta em março de 2022. Devido à pandemia ele acabou sendo apresentado ao público só em 2023 durante a Techno-Classica da cidade de Essen (megaevento de automóveis antigos).
Na foto de abertura eu apresentei uma foto desta réplica que em nada difere daquele mostrado nas fotos do modelo original postadas acima. Nele foram usados, na medida do possível, componente originais da década de 1940, tanto do acervo da VW Nutzfahzeuge, e do AutoMuseum, quanto de colecionadores particulares.
Nunca houve um número EA para os Plattenwagens (EA-Entwicklungsauftrag – ordem de desenvolvimento), portanto não havia número de projeto, tampouco há desenhos oficiais deste veículo. Para a construção da réplica um engenheiro aposentado voltou à ativa. Ele foi colocando as medidas conhecidas em sobreviventes e medidas estimadas em análise de fotografias numa ferramenta CAD (projeto auxiliado por computador), com isto foi feito um projeto detalhado por computador que permitiu a confecção da réplica mais aproximada possível de um dos primeiros modelos.
Além das peças antigas ainda existentes, diversos componentes foram fabricados para a réplica. Isso inclui a estrutura tubular desenvolvida pela Volkswagen Nutzfahrzeuge, as peças de chapa metálica e a parte elétrica. As novas tábuas de madeira para a plataforma de carga do Plattenwagen vieram de uma floresta das proximidades da fábrica da Volkswagen em Wolfsburg.
Curiosidades brasileiras
Através da análise cuidadosa de uma conhecida foto eu descobri que na Fábrica Anchieta também houve pelo menos um Plattenwagen de primeira geração (ainda sem a proteção para motorista e passageiro); sim, pois eles faziam parte de alguns dos processos de fabricação desde o início dos trabalhos, mimetizando o que ocorria na fábrica modelo que era a de Wolfsburg. Veja a foto abaixo:
Na Fábrica Anchieta da Volkswagen do Brasil, surgiram diversos Plattenwagens e outros veículos dedicados a tarefas específicas, aproveitando os componentes mecânicos disponíveis e a criatividade da equipe de engenharia, conforme mostrado nas fotos abaixo:
Do canto superior esquerdo no sentido horário: Plattenwagen feito no Brasil, aqui apelidado de “Lambreta” (assim mesmo, com um “t” só), veículo para recolher cavacos de usinagem, trator para rebocar carretinhas com componentes (no caso para-choques) e veículos especiais se preparando para alguma tarefa.
(¹) – Matéria para quem se interessar sobre os “Bombardeios na fábrica Volkswagen na II Guerra Mundial”.
AG
Para a parte relativa ao Plattenwagen 1946 “zero km” foram feitas pesquisas no site tuningblog.eu com o trabalho de Karsten Straubing.
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