A história da Jaguar no pós-guerra é um dos capítulos mais ricos da engenharia automobilística britânica. Da busca por independência técnica à consolidação nas pistas, a marca viveu, entre o final dos anos 1940 e a década de 1950, um período de conquistas notáveis e inovações que moldaram sua identidade.
Tudo começou com a criação do motor XK, um projeto visionário que garantiu à Jaguar tecnologia própria por quatro décadas. O mesmo motor equipou os lendários esportivos C-type e D-type, protagonistas de uma fase gloriosa em Le Mans. Foi nesse mesmo contexto que nasceu a colaboração com a Dunlop, responsável por transformar para sempre a tecnologia de frenagem com os pioneiros freios a disco. E, quando a marca decidiu encerrar suas atividades oficiais nas pistas, o icônico XKSS surgiu como uma espécie de epílogo para aquela geração de carros que marcaram época.
Reunimos aqui cinco textos que contam essa trajetória de forma detalhada: do motor XK ao C-type e ao D-type, passando pelos freios a disco e culminando no raríssimo XKSS. Um passeio por um período em que a Jaguar não apenas construiu carros rápidos, mas ajudou a definir os rumos da engenharia automobilística.
O MOTOR XK
O motor XK foi desenvolvido para dar autonomia à Jaguar quando retomou a produção após a Segunda Guerra Mundial. Ele equiparia os modelos da marca pelos 40 anos seguintes.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a diretoria da empresa, que em breve se chamaria Jaguar Cars Ltd, se reunia aos domingos na fábrica de Foleshill para o plantão contra incêndios, discutindo os rumos futuros da companhia. Até então, os modelos pré-guerra usavam motores fornecidos pela Standard, mas o fundador William Lyons queria que a nova Jaguar tivesse um motor próprio, que pudesse ser desenvolvido internamente com mais flexibilidade, em sintonia com a linha de veículos e com um novo perfil de clientes.
Lyons incumbiu os engenheiros William Heynes, Claude Baily e Walter Hassan de criar o novo motor. Ele desejava que fosse moderno desde o início, que evitasse custos excessivos de desenvolvimento contínuo. Também precisava ser fácil de construir e, do ponto de vista do cliente, confiável e versátil, capaz de equipar tanto sedãs quanto carros esporte. Além disso, deveria gerar 160 cv, uma meta bastante ambiciosa para a época. E, claro, precisava ter uma aparência marcante.

Diversos projetos de motores de quatro cilindros e 2 litros foram criados, mas nenhum atingiu a potência desejada ou teria o apelo necessário para o crucial mercado de exportação americano. A solução foi desenvolver um motor de seis cilindros em linha, 3,4 litros, com duplo comando de válvulas no cabeçote, algo incomum em um período em que motores de válvulas laterais ainda eram amplamente usados.
Embora o motor XK tivesse sido originalmente concebido para estrear no sedã Mark VII, atrasos no desenvolvimento do chassi fizeram com que seu primeiro uso fosse no esportivo XK120. O carro foi desenvolvido rapidamente e apresentado com grande sucesso no Salão de Londres, em outubro de 1948, no Earls Court Exhibition Centre. Destacavam-se a velocidade máxima de 120 milhas por hora e o preço de 998 libras (antes dos impostos), ambos surpreendentes para a época. O XK120 logo começou a vencer corridas, quebrar recordes de velocidade e vender bem nos Estados Unidos, consolidando sua reputação como um clássico.

O motor XK era tão avançado que equipou a maior parte dos modelos Jaguar nos 40 anos seguintes, incluindo os C-type e D-type, vencedores em Le Mans nos anos 1950, além dos revolucionários E-type e XJ. Foi adaptado em versões mais compactas de 2,4 litros e também ampliado para variantes de 3,8 e 4,2 litros. Sua versatilidade permitiu ainda aplicações em barcos e veículos militares.
O último carro equipado com motor XK, um Daimler limousine de 4,2 litros, saiu da linha de produção em 1992. Ao longo de sua história, mais de um milhão de motores XK foram fabricados.
Era preciso ser confiável e versátil, capaz de equipar tanto sedãs quanto esportivos.
C-TYPE
Mesmo sem nunca ter construído um carro de corrida antes, a Jaguar levou apenas sete meses para projetar e produzir um carro que venceria Le Mans logo em sua estreia.

Em 1950, um XK120 de produção já havia mostrado velocidade promissora na 24 Horas de Le Mans. No entanto, ficou claro que, para vencer a famosa prova de resistência, seria necessário um carro especialmente projetado para isso. O resultado seria um dos carros de corrida mais icônicos da história.
Após concluir o desenvolvimento do sedã Mark VII, a Jaguar iniciou em outubro de 1950 o projeto do XK120C, ou C-type, destinado à competição. Segundo o engenheiro-chefe William Heynes, “tínhamos sete meses para projetar, construir e validar um carro totalmente novo. Também precisávamos preparar três chassis para a corrida.”
Uma pequena equipe de 24 profissionais, incluindo os especialistas em motores Claude Baily e Walter Hassan, o engenheiro de chassis Bob Knight e o aerodinamicista Malcolm Sayer, além de Phil Weaver da oficina experimental, trabalhou no C-type em paralelo às suas tarefas diárias.

Segundo Heynes, “nosso pequeno grupo trabalhava incansavelmente em desenhos e modelos de papel. Construímos moldes de madeira e até usamos cabos de vassoura para simular a estrutura tubular.”
O chassi do C-type era tubular, com carroceria de alumínio como elemento estrutural adicional. O motor XK de 3,4 litros foi utilizado com poucas modificações em relação ao modelo de rua.
O C-type ficou pronto apenas seis semanas antes do embarque para Le Mans. Após testes em Silverstone, os carros foram conduzidos por estrada até a França pelos próprios mecânicos. “Achamos que seria bom mostrar que nossos carros podiam ser dirigidos normalmente, além de testar se algo poderia falhar antes da corrida”, comentou o gerente de competições Lofty England.
Com a base no Hotel de Paris, no centro de Le Mans, a equipe realizou os ajustes finais. O desenvolvimento do C-type havia sido mantido em segredo, o que gerou grande curiosidade. Na prova, porém, o carro foi dominante. Stirling Moss quebrou o recorde de volta em Le Mans e os vencedores Peter Walker e Peter Whitehead estabeleceram um novo recorde de distância percorrida nas 24 horas.
Nada mau para uma equipe que nunca havia construído um carro de corrida.
FREIO A DISCO
Uma colaboração única entre Dunlop e Jaguar nos anos 1950 transformou para sempre a tecnologia de frenagem.

Nos primeiros anos da década de 1950, o XK120 era o esportivo do momento, tanto para lazer quanto para corridas. Sua velocidade máxima de 120 milhas por hora (193 km/h) já ultrapassava os limites dos freios a tambor convencionais. A solução da Jaguar acabaria revolucionando a indústria automobilística.
William Lyons recordava uma conversa com a Dunlop sobre freios de aeronaves. Impressionado com o desempenho, perguntou se seria possível adaptar a tecnologia para automóveis.
“Sei que vocês avançaram bastante nos freios a disco para aviões e me pergunto se planejam desenvolver isso para carros”, escreveu Lyons. “Seria um grande benefício para a indústria britânica.”
O primeiro teste real ocorreu na Mille Miglia de 1952, com um C-type pilotado por Stirling Moss e o navegador Norman Dewis. Os comissários da prova ficaram intrigados e pediram uma demonstração prática do funcionamento dos novos freios.
Apesar de abandonarem a prova por acidente, a superioridade dos freios ficou evidente. Após um quarto lugar em Goodwood, o sistema foi testado internacionalmente na 24 Horas de Le Mans de 1952. Embora problemas de refrigeração tenham prejudicado a performance, logo depois Moss conquistaria a primeira vitória oficial dos freios a disco no GP de Reims de 1952. No ano seguinte, Tony Rolt e Duncan Hamilton usaram sua confiabilidade na 24 Horas de Le Mans, vencendo com média superior a 100 milhas por hora (160 km/h) pela primeira vez na história da prova.
A vitória consolidou a vantagem dos freios a disco, que se tornaram padrão em carros de alto desempenho e de competição. Os primeiros Jaguars de rua com freios a disco foram o XK150 (1957), o Mark IX (1958) e o compacto Mark II (1959), todos capazes de superar as 100 milhas por hora.
“Hoje, todos os carros de rua usam freios a disco, praticamente sem problemas”, lembra Moss. “Isso porque nós enfrentamos todos os problemas em 1952.”
D-TYPE
A Jaguar pegou tudo o que havia de melhor no C-type e elevou a um novo patamar. O resultado foi um carro que venceu a 24 Horas de Le Mans três vezes.

Após as vitórias em Le Mans com o C-type em 1951 e 1953, a Jaguar sabia que precisava de um carro completamente novo para se manter competitiva. Segundo Bob Berry, do departamento de relações públicas da marca, “éramos movidos pela pressão constante da competição, pela importância comercial do sucesso e pelo desejo humano de surfar essa onda o máximo possível.”
A equipe de engenharia adotou técnicas de construção aeronáutica para tornar o novo D-type mais rígido e leve, melhorando sua dirigibilidade. A estrutura de alumínio abrigava o habitáculo e servia como base para a suspensão e transmissão traseira, enquanto o motor e a suspensão dianteiros eram montados numa estrutura tubular de alumínio. Esse conceito de monobloco definiria o padrão para carros de competição por décadas, com a Fórmula 1 adotando o design cinco anos depois.
O motor XK de 3,4 litros, agora com cerca de 250 cv, foi instalado em posição levemente inclinada, criando o característico ressalto no capô, um detalhe de design que a Jaguar preserva até hoje. A suspensão evoluiu a partir do C-type, complementada pelos pioneiros freios a disco pioneiros.
O D-type foi otimizado aerodinamicamente para os longos retões de Le Mans. Malcolm Sayer reduziu a área frontal, enquanto uma posição de pilotagem mais baixa e o para-brisa envolvente protegiam o condutor. Um estabilizador vertical na traseira melhorava a estabilidade direcional.
Em 1954, problemas diversos impediram uma vitória em Le Mans, mas um mês depois o D-type venceu a 12 Horas de Reims. Em 1955, recebeu carroceria mais aerodinâmica, motor aprimorado com 270 cv e diversas atualizações estruturais. Venceu a 12 Horas de Sebring e a 24 Horas de Le Mans, repetindo os triunfos em 1956 e 1957 com a equipe particular Ecurie Ecosse.
Com a redução das atividades de competição da Jaguar, os últimos D-type foram convertidos no esportivo de rua XKSS.
Apenas 16 unidades foram produzidas antes do incêndio que devastou parte da fábrica de Browns Lane em 1957, tornando esses modelos ainda mais exclusivos.
XKSS
Criado a partir de chassis remanescentes do D-type, o XKSS é um raro esportivo de rua com DNA de corrida.

O XKSS é um daqueles carros que ilustram bem o que poderia ter sido, não fosse o destino. Apenas 16 unidades foram produzidas antes que um incêndio encerrasse sua fabricação, reforçando seu status icônico.
Após a retirada oficial da Jaguar das pistas em 1956, a divisão de competição possuía 25 chassis do D-type remanescentes. William Lyons decidiu transformá-los em esportivos de rua de alto desempenho.
O cockpit monoplace do D-type foi adaptado para acomodar um passageiro, com remoção da carenagem de proteção do lado do piloto e instalação de um para-brisa mais adequado para uso em estrada. O motor mantinha a configuração 3,4-litros, seis cilindros em linha, com 250 cv. Com um peso apenas 45 kg superior ao do D-type, o XKSS atingia 235 km/h.
Embora tenha recebido pequenos confortos para torná-lo mais utilizável no dia a dia, o XKSS continuava sendo um carro extremamente desafiador de dirigir, quente, ruidoso e apertado. Sua herança de competição, no entanto, apenas aumentava seu apelo.
Lançado no Salão de Nova York de 1957, o XKSS foi um sucesso imediato, com pedidos para 25 unidades. Mas na noite de 12 de fevereiro, um incêndio destruiu quase um terço da fábrica da Jaguar, incluindo cinco chassis de XKSS que aguardavam finalização. Sem as ferramentas e moldes específicos para a carroceria do modelo, a produção não pôde continuar. Recentemente a Jaguar Classic fabricous essas cinco unidades restantes.

Entre seus admiradores estava o astro de Hollywood Steve McQueen, que adquiriu um XKSS em 1958. Originalmente branco com interior vermelho, McQueen o mandou pintar em British Racing Green e revestir o interior com couro preto. Hoje, o carro integra o acervo do Petersen Automotive Museum, em Los Angeles, e seu valor é estimado em 10 milhões de dólares.
Apenas 16 exemplares do XKSS foram construídos antes que a produção fosse abruptamente interrompida.
As partes anteriores
Parte 1: https://autoentusiastas.com.br/2025/05/historias-da-jaguar-parte-1-de-4/
Parte 2: https://autoentusiastas.com.br/2025/06/historias-da-jaguar-parte-2-de-4/
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