Uma de minhas primeiras atividades na indústria de pneus foi a avaliação técnica e escolha do pneu para o Renault Mégane geração I.
Produzido nas versões hatch e sedã pela Renault argentina, e também comercializado no Brasil via importação oficial entre 1998 e 2001, ele foi o sucessor do Renault 19.
Foi um trabalho conjunto de profissionais da Renault e da Bridgestone para definir tecnicamente um pneu mais adequado ao veículo, pois o antes negociado entre ambas empresas não havia sido bem aceito nas primeiras avaliações. O motivo? Ruído.
O local para os trabalhos não poderia ser melhor. A aprazível e pacata vila de Alta Gracia, em Córdoba, era um verdadeiro campo de provas da Renault à céu aberto. Vários tipos de ruas, avenidas e estradas (estas com longas retas, por exemplo) e uma ótima diversidade de pavimentos e de terra. Perfeito!
E lá fomos nós, e as amostras de pneus também, um jogo (quatro pneus) de cada modelo.
Foram coletados de diferentes unidades fabris da Bridgestone, entre elas Brasil, México, da própria Argentina, Itália, Japão. Além de Estados Unidos.
O objetivo foi escolher não só o mais silencioso, mas que também atendesse os outros requisitos de conforto e dirigibilidade estabelecidos.
O carro utilizado foi um protótipo de linha, ou seja, já em configuração de comercialização, na versão sedã.
Como se faz corriqueiramente, com rota e velocidades definidas pela Renault, partíamos para as avaliações subjetivas (impressões ao dirigir) e retornávamos com nossos veredictos em cada jogo experimentado. Nesta parte eu acompanhava o experiente avaliador deles.
Além disto, a Bridgestone investiu também num teste objetivo (leia-se medição com equipamentos eletrônicos) ao mesmo tempo, trazendo instrumentação e técnicos dos EUA.
Algo pouco usual, mas eficaz, foi feito. Um microfone especial para medições montado na soleira bem próximo à roda dianteira direita.
Com isto, conseguíamos corroborar com números aquilo que a percepção humana dizia a respeito de cada jogo assim que voltávamos para a troca por outro.
A TEORIA POR TRÁS DA PRÁTICA
Mas, afinal, quais os ruídos analisados em avaliações e testes como este?
Para entender, primeiro é interessante ter uma noção básica das reações do ouvido humano.
É importante saber que ele não responde igualmente à todas as freqüências, sendo mais sensível nas baixas e altas do que nas médias ou naquelas de uma conversa. A unidade de frequëncia é o hertz, cujo símbolo é Hz.
O ser humano sente as oscilações e vibrações a partir de 20 Hz e raramente acima de 16.000 Hz, enquanto um cão começa também em 20 Hz, mas capta até 30.000 Hz; o morcego também inicia nos mesmos 20 Hz e vai até os 160.000 Hz.
Então, para obter número singular representando o nível de pressão sonora (que muitos chamam erroneamente de volume) de um ruído contido numa faixa tão larga de frequências, numa forma representativa da resposta física do ouvido humano, é necessário reduzir os impactos das baixas e altas frequências em relação às médias. A medição do nível sonoro resultante é a escala ponderada A e a unidade é o decibel (símbolo dBA). Não é escala linear, mas logarítmica.
Percebe-se, então, que o que importa é a exposição humana à combinação desse nível sonoro medido em decibéis escala ponderada A com a frequência em que ocorre, medida em hertz. Essa correlação está na figura abaixo. Os números na vertical representam a escala ponderada em dBA.
O ruído produzido através da rodagem de um pneu no solo vem pelo ar. É gerado pelos intervalos de tempo entre as repetições dos impactos dos componentes (blocos) da banda de rodagem no solo. Quanto mais longo o tempo entre as repetições, mais baixa a frequência de um ruído.
As repetições lentas geram baixas frequências, as repetições rápidas geram altas frequências.
Conclusão: quanto mais velocidade do veículo, mais repetições e, portanto, mais altas frequências de ruído transmitidas diretamente pelo ar.
Este é o que os técnicos chamam de airborne noise (ruído carregado pelo ar, em tradução livre).
O outro meio do ruído dos pneus chegar aos ocupantes é a via sólida, ou solidborne (carregado por via sólida, em tradução livre).
Através dos elementos de direção, suspensão, painel e assoalho, a ressonância no interior da cabine transmite as vibrações sofridas pela carcaça (e o ar pressurizado dentro dela) depois das excitações do solo impostas ao pneu ou por aquelas provocadas pelos movimentos dos próprios componentes de construção do pneu.
CONTROLE DE RUÍDO
Os ruídos de baixa frequência contornam obstáculos e passam por aberturas sem perda de intensidade, irradiando de maneira quase igual em todas as direções, enquanto os de alta frequência propagam-se em todas as direções também, mas com nível elevado em algumas direções e baixo em outras, e são facilmente refletidos por obstáculos.
O de baixa frequência irradia de novo a partir de obstáculos e aberturas e em todas as direções como se fosse uma nova fonte de ruído.
O de alta, por sua vez, pode ser refletido por superfícies rígidas da mesma forma que a luz é refletida por espelho e não contorna obstáculos, o que torna anteparos eficazes para controle.
Esta é a razão básica das caixas de rodas terem aqueles plásticos na parte interna dos para-lamas.
Longe da fonte, o ruído de alta frequência é mais facilmente audível e menos incômodo porque é atenuado pela absorção do ar, especialmente para longas distâncias. Entretanto, fica mais perturbador quanto mais se aproxima. Exemplo, a sirene de veículos de serviço público como os de polícia..
Por isso o ruído de passagem, aquele que se percebe quando um veículo passa por nós, como na foto acima. É medido de forma padronizada e regulamentada para pisos e distâncias aos microfones.
Para quem está no veículo, em distância permanentemente igual até os pneus, a avaliação se concentra nas duas vias acima mencionadas e pelas quais o ar vibrando chega até os ouvidos.
Por fim, vale lembrar que a maioria dos ruídos de pneus está na faixa de intensidade de 60~80 dBA, mas numa ampla gama de frequências.
Para controlá-los e torná-los menos incomodativos aos ocupantes, o trabalho de engenharia busca reduzir não só a intensidade, mas também a faixa de frequência em que ocorrem (veja novamente o gráfico acima).
Para isso, são efetuadas modificações de estrutura, de materiais ou até mesmo de desenho conforme os resultados obtidos nas medições técnicas.
Sempre lembrando que os sons mais graves (baixas frequências) geralmente são mais agradáveis que os agudos (altas frequências).
OS TIPOS PRINCIPAIS
Entre os ruídos que chegam pelo ar até os ocupantes, o mais pertinente é o da banda de rodagem. É proveniente da banda, depois de assumir uma planicidade momentânea, expulsar o ar que havia entre os blocos.
Também conhecido como ruído (ressonante) de rodagem.
A intensidade e a frequência mudam com a velocidade do veículo e com o piso (quanto mais liso melhor para a medição). Em alguma determinada velocidade haverá o pico de intensidade e esta é depois mais acuradamente avaliada com o veículo trafegando apenas nessa velocidade.
Normalmente está abaixo de 5.000 Hz (250~2.500 Hz) e pode ser percebido como aquele chiado ou ruído de fritura em óleo. É como dirigir em piso seco, mas com ruído de piso liso molhado.
Se o ruído for como o de tambor é porque a frequência é bem mais baixa (algo entre 25 Hz e 100Hz) e percebida auditivamente pela sensação de pressão nos ouvidos.
Se estiver entre 200~1.800 Hz é possível que nos dê a sensação do ruído de rolamento de roda.
Outro ruído bem comum proveniente da banda (incluindo os ombros) é aquele guincho estridente quando o veículo faz uma curva próximo do limite de aderência ou numa frenagem mais intensa.
Permanece o fato de ser provocado pela pressão do ar nos blocos, mas agora com o adicional do escorregamento desses blocos. Normalmente está situado entre 150 Hz e 800 Hz.
Entre os ruídos que chegam por via sólida o mais característico é o chamado ruído de rodagem de curso ou de estrada. É uma variante do ruído de banda, só que em piso não tão liso.
É facilmente notado quando mudamos de um asfalto bem liso para um mais rugoso.
Com agregado mais aberto no asfalto rugoso, a quantidade de ar que a banda tem de bombear é maior do que em piso liso. Além disto, as irregularidades (mesmo que pequenas) fazem a carcaça vibrar, vibração esta na faixa de 100 Hz a 500 Hz, portanto, um ruído mais grave.
Dentro dessa faixa, mais precisamente ao redor dos 250 Hz, existe um som característico da cavidade do pneu. É aquele da bola de basquete quando atinge o solo rígido da quadra. Quanto mais cheia ela estiver, maior a reverberação (repetição do som).
Outro ruído característico que chega por via sólida é aquele rosnar que aparece quando diminuímos a velocidade pela redução de marchas ou mesmo pelo freio aplicado levemente até a parada total do veículo. Normalmente cresce de intensidade com a redução da velocidade.
Por fim, o que não falta são os causadores de impactos nos pneus; desde cabeceiras de pontes desalinhadas, pois o asfalto na emenda normalmente cede, passando por juntas de dilatação e sem esquecer (jamais) dos buracos, uma banda de rodagem e a carcaça do pneu têm que suportar e dissipar a energia do impacto.
Além do som produzido pela abrupta vibração imposta à carcaça e ao ar dentro dela, o efeito mola precisa de um amortecedor. O pneu cumpre as duas missões e também atenua o ruído pelas características definidas no projeto. Normalmente está entre 25 Hz e 100 Hz.
É esperado que a intensidade (dBA) imposta pelo impacto seja o mais baixa possível, que não haja ressonância (aumento da amplitude da onda sonora) e com rápido amortecimento (volta da carcaça à sua frequência natural).
Voltando ao Mégane, creio que agora seja viável perceber por que o microfone de medição foi colocado naquela posição. O pneu mais distante do motorista e de tração era o que mais atuava.
Com relação ao pneu final, os avaliadores escolheram, e as medições confirmaram, um “patinho feio”, um pneu em que ninguém ali acreditava, pois era um projeto antigo e que seria descontinuado em breve. Mas foi ele que, além de ser menos ruidoso, também entregou as melhores prestações de serviço para conforto e dirigibilidade ao carro.
Coisas da vida e da tecnologia.
MP