O carro chefe da Porsche é o modelo 911, e é uma das referências em termos de carro esporte desde 1963, quando foi apresentado no Salão de Frankfurt. É um produto tão bem conceituado e consolidado no mercado que a Porsche não ousa nem alterar suas linhas básicas de carroceria há cinqüenta anos.
O 911 é um carro que gera amor e ódio entre as pessoas. Há quem o adore por ser um dos poucos carros diferentes do mercado, com motor traseiro do tipo boxer de cilindros contrapostos, bem como quem o deteste pelo mesmo motivo. Os primeiros 911 eram rápidos e difíceis de dirigir, justamente pelo seu comportamento temperamental em curvas, porém nem por isso a Porsche mudou o conceito do carro.
Ao invés de tirar o motor que fica pendurado atrás do eixo traseiro, os germânicos apenas evoluíram o projeto com soluções de engenharia capazes de sobrepor as dificuldades físicas do conceito do carro. O motor traseiro tornou-se um aliado e não mais um vilão do balanço do carro, e uma das formas de se evoluir um carro esporte é nas pistas.
Assim como falamos um poucos dos Corvettes de pista, a Porsche sempre utilizou os campeonatos ao redor do mundo como laboratórios para seus automóveis, desenvolvendo tecnologias que logo migraram para os carros de rua. Dois casos de derivados do 911 de competição são interessantes, onde dois dos princípios do modelo foram relevados em prol do desempenho.
O Moby Dick
Na segunda metade do anos 1970, a Porsche competia nas provas do campeonato mundial de carros esporte, na categoria Grupo 5, com o modelo 935, que era uma versão bem desenvolvida e rápida do 911 de rua, capaz de atingir mais de 300 km/h com facilidade. O engenheiro alemão Norbert Singer foi um dos principais responsáveis pelo 935 ser tão bem sucedido. Singer era um ótimo analista de regulamentos, aproveitava de todas as formas as regras e explorava os recursos mais elaborados possíveis para criar carros vencedores.
Baseado no 911 Carrera RSR turbo, que por sua vez era a versão de corrida do 930 (ou o 911 Turbo original), o 935 tinha a base do seu monobloco de aço mantido do carro de produção, porém com as extremidades completamente modificadas, dado ao regulamento permitir tais alterações. Desta forma, rodas bem mais largas poderiam ser montadas no carro.
O motor dos 935 era um 2,8-litros de seis cilindros, um comando de válvulas por cabeçote, duas válvulas por cilindro, com um grande turbocompressor KKK, capaz de gerar até 600 cv. Alguns componentes do motor do antigo 908 foram aproveitados, como a bomba de combustível.
A carroceria do 935 também podia ser alterada por regulamento, contanto que a célula central fosse de produção. A aerodinâmica tinha que ser otimizada para aproveitar o potente motor, então muito foi feito. Os faróis foram relocados e os pára-lamas modificados, criando a chamada frente slantnose, ou nariz inclinado.
A traseira também foi toda alterada, pois as enormes rodas de 19 polegadas ficam muito para fora da carroceria original, então os pára-lamas foram redesenhados para trabalhar junto com uma nova asa traseira mais longa e larga. A própria carroceria tinha uma suave curvatura para agir como uma asa. O engraçado é que olhando o carro por trás, dá para ver a carroceria original do 911 dentro dos pára-lamas.
O carro foi um sucesso. Venceu praticamente tudo o que disputou. Em paralelo, a Porsche competia com o 936 na categoria protótipo, o Grupo 6, com grande sucesso. Venceu as 24 Horas de Le Mans em 1976 e 1977. Norbert Singer ainda tinha um desejo, vencer Le Mans com um carro da categoria GT, e o 935 era o que se tinha em mãos para trabalhar. Seria um carro oficial da equipe de fábrica da Porsche.
Com diversas versões ao longo dos anos, o 935 foi evoluindo e o projeto ficando cada vez mais robusto e confiável. 1978 seria o ano para a tentativa mais drástica de Singer para criar um GT vencedor. Uma dificuldade seria o orçamento, restrito para tal empreitada.
O carro ficou nomeado como 935/78, em alusão ao ano do projeto. O motor para o novo carro tinha que ser mais potente que o 935 original. Pelo menos 700 cv. Mas esta potência toda não conseguia ser alcançada antes por um simples motivo: os motores não agüentavam, tanto pelo combustível como por quebra estrutural. Todo 911 tinha o motor arrefecido a ar, que limita a potência que se pode extrair do motor antes dele derreter.
O regulamento pedia que o bloco do motor e virabrequim fossem itens de produção do fabricante, então Singer e seu time tinham que extrair os cavalos de potência extras dos cabeçotes. Utilizar os modelos que originalmente foram criados para o 908 com duplo comando era uma idéia, mas ainda não o suficiente. Quatro válvulas por cilindro permitiria um melhor posicionamento das velas dentro da câmara de combustão, e assim foi feito. Também, a cilindrada foi aumentada para 3,2 litros.
Ainda era necessário mais refrigeração para o motor, e como o bloco não poderia ser modificado, os cabeçotes receberam dutos para passagem de água. Assim, o motor do novo protótipo era arrefecido a ar e a água, a primeira vez em um 911. Os cabeçotes ainda contavam com duplo sistema de ignição e agora dois turbocompressores KKK. A potência do motor pode desta forma ser elevada, chegando a 850 cv.
O regulamento da categoria do Grupo 5, referente à carroceria e estrutura dos carros, havia sido alterado (questionavelmente) para que o BMW 320 turbo se enquadrasse, e Singer aproveitou o recurso para seu benefício. A construção do 935/78 seria do zero, partindo de um monobloco de 911 Turbo novinho em folha. Da parede de fogo para trás e do painel dianteiro para frente, tudo foi refeito em uma estrutura de alumínio. A mudança do regulamento que permitiu a homologação do BMW 320 liberava a alteração do assoalho do carro, que podia ser elevado.
No caso do BMW 320, a elevação do assoalho era necessário para passar um escape maior, mas no carro de Singer, como não havia escape vindo da dianteira do carro, ele abaixou o carro todo em 75 mm, uma vez que os novos pontos de fixação da suspensão há estavam preparados para isso na estrutura nova de alumínio. Assim, com o carro mais baixo e conseqüentemente com uma área frontal menor, o arrasto aerodinâmico seria menor. Curiosamente, abaixar o carro prejudicou a transmissão, pois o ângulo de trabalho das semi-árvores ficou muito grande. A solução foi montar o transeixo de cabeça para baixo, elevando o ponto de montagem das semi-árvores e compensando o efeito do carro rebaixado.
A dianteira e traseira da carroceira foram feitas do zero também, com o mesmo perfil do slantnose do 935 convencional só que ainda mais baixo, longo e suave. A traseira também foi alongada para melhorar a estabilidade em alta velocidade e um novo tipo de asa traseira montado no carro. Como os pára-lamas traseiros eram extremamente largos, foi possível montar os radiadores do sistema de arrefecimento dos cabeçotes na frente das rodas traseiras, com boas aberturas para ventilação.
Apelidado de Moby Dick, a baleia cachalote do clássico livro de Herman Melville, em função de sua curiosa e enorme carroceria, o 935/78, como ficou oficialmente conhecido, tinha como objetivo exclusivamente vencer a 24 Horas de Le Mans. Com muitos problemas durante os testes em outros circuitos, o Moby Dick foi poupado de competições ao máximo. Dois carros foram construídos, porém apenas um competiu.
A primeira corrida em que o novo carro da Porsche participou foi a 1.000 Quilômetros de Silverstone, de seis horas de duração, bom indicativo de qual seria o desempenho do carro. A dupla Jacky Ickx e Jochen Mass teria o desafio de testar o Moby Dick em competição pela primeira vez. E foi com grande satisfação que o carro mostrou-se mais rápido que todos os concorrentes e venceu a corrida com folga, liderando uma fila de Porsches 935.
Para a 24 Horas de Le Mans de 1978, novamente apenas um 935/78 foi inscrito, nas tradicionais cores da Martini Racing, e já nos treinos ficou entre os primeiros. Um carro do Grupo 5 na grande reta Mulsanne a 365 km/h foi assombroso. Infelizmente muitos problemas fizeram o Moby Dick acabar apenas em oitavo lugar na classificação geral da prova. O motor falhava constantemente, vazamentos de óleo forçaram o carro a parar algumas vezes. Não foi exatamente como Norbert Singer sonhava, mas ainda assim mostrou que o carro tinha potencial.
Curiosamente, nessa mesma Le Mans em que o Moby Dick correu, o trio brasileiro Paulo Gomes, Alfredo Guaraná Menezes e Marinho Amaral, com um 935/77 Grupo 5, chegou em sétimo na classificação geral e segundo no Grupo 5, atrás do trio americano Jim Busby/Chris Cord/Rick Knoop, da equipe Porsche Kremer Racing, sexto na geral. A equipe brasileira se chamava Pace, homenagem a José Carlos “Moco” Pace, piloto brasileiro de F-1 tragicamente falecido em acidente aeronáutico em 18 de março do ano anterior, juntamente com outro piloto e dono do pequeno monomotor, Marivaldo Fernandes. Paulo e Moco eram muito amigos.
Infelizmente ao final da temporada de 1978 a Porsche declarou que oficialmente estaria se retirando das competições. Apenas os carros de equipes particulares continuariam a competir. Dos dois Moby Dicks originais, o que correu oficialmente está no Museu da Porsche e o segundo carro foi vendido nos anos 1980 para um piloto particular e ainda participa de alguns eventos de carros clássicos.
O 911 GT1
Nos anos 1980 e 1990, a Porsche participava do Mundial de Resistência em forma de apoio aos pilotos particulares e com projetos especiais apenas. Em 1996, o campeonato estava voltando a estar em destaque no mundo e alguns fabricantes estavam investindo em novos carros.
A Porsche, que então tinha carros na categoria GT2 e protótipos com equipes particulares, via com bons olhos a volta em uma categoria de destaque, como a GT1. O regulamento desta categoria permitia carros com base em um modelo de produção largamente modificados, contanto que uma tiragem de carros de produção fosse feita exatamente igual ao de competição. Em 1995 uma tentativa foi feita, modificando um 911 GT2 para melhorar seu desempenho, porém pouco adiantou frente aos rivais.
Quem dominava a categoria era o McLaren F1, a obra-prima de Gordon Murray. Ainda competiam na GT1 carros como Ferrari F40 e Nissan Skyline GT-R, todos carros de ponta. O desafio seria grande, mas novamente Norbert Singer estava no comando do projeto.
Utilizando novamente o 911 como base, agora na sua geração 993, Singer fez um trabalho similar ao dos 935. Apenas a parte central do carro de produção foi utilizado, mas desta vez ainda mais “recortado” que o 935. Mesclando o monobloco de aço com peças de compósito de fibra de carbono, o novo carro ficou mais leve e muito mais rígido.
O que o novo carro precisava era melhorar a aerodinâmica para conseguir produzir mais downforce, a força vertical que empurra o carro contra o solo. O problema é que os aerofólios eram restritos e definidos por regulamento, e nos 911 já estavam no limite da eficiência. Os rivais contavam com o efeito-solo gerado pelo assoalho em forma de venturi, acelerando o ar sob o carro.
A única forma de se conseguir isso em um 911 era tirar o motor da traseira do carro, pois ele ficava no caminho onde o extrator deveria ser montado. A solução foi justamente essa, tirar o motor da traseira do carro. Aproveitando o conjunto de motor e transmissão dos antigos 956/962 da categoria protótipo, o novo 911 GT1 teria motor central-traseiro, como eram os antigos 550 do tempo de James Dean. A geração 993 ainda usava motor arrefecido a ar, mas o GT1 teria arrefecimento a agua, tanto nos cabeçotes como no bloco.
Utilizar o conjunto dos consagrados 956/962 era um ponto positivo, pois eram componentes já conhecidos e muito testados. A chance de ocorrer problemas era menor, como aconteceu com o Moby Dick, onde praticamente toda parte de cabeçotes era nova. Os dois turbocompressores KKK com resfriadores de ar (intercoolers) no motor de seis cilindros 3,2-litros ajudavam a gerar até 650 cv.
A suspensão dianteira dos 911 de rua continuava fiel ao conceito McPherson, mas ela foi removido para que os engenheiros tivessem maior liberdade de regulagens e melhor aproveitamento do espaço no carro, com braços independentes triangulares. A suspensão traseira foi reprojetada em cima do que existia do 962, pois o transeixo já era membro estrutural e suportava a montagem dos braços e amortecedores traseiros.
A primeira prova de fogo do GT1 foi justamente em Le Mans. Desde os treinos, o novo GT1 da Porsche foi consistente e rápido. Perdendo na corrida apenas para o protótipo Porsche WSC, o 911 de motor central ficou em segundo e terceiro lugar na classificação geral, e vitorioso na categoria. Por pouco não foi a glória absoluta, pois os GT1 ficaram apenas uma volta atrás do protótipo.
As provas seguintes do campeonato foram dominadas pelos 911 GT1, mostrando que o projeto era mesmo vencedor. A opção de montar o motor central para criar espaço para os venturis foi certeira. Arrefecer o motor todo com água também foi uma abertura para que na próxima geração dos 911 de rua, a 996, o tradicional arrefecimento a ar morresse, o que não agradou muito aos puristas.
Como o regulamento exigia a construção de uma série de vinte e cinco carros de rua iguais aos de competição, a Porsche não poderia deixá-los de lado. Os carros de rua, com motores um pouco menos potentes, foram chamados de 911 GT1 Strassenversion (Versão de Estrada em alemão). Hoje em dia um destes carros vale uma pequena fortuna.
O programa GT1 continuou em 1997 e 1998 com carros similares, mas cada vez mais parecidos com protótipos. Em 1998 o GT1 venceu a 24 Horas de Le Mans na classificação geral.
Tanto no Moby Dick como no 993 GT1, o sucesso do projeto veio de quebras de conceitos padrões da marca. O sistema de arrefecimento com água e o motor montado no centro do carro destoam dos Porsches de suas épocas, porém abriram caminho para a evolução do modelo de rua, a cada passo, tornando o 911 o grande carro que é hoje, além dos outros modelos como o Carrera GT e o Boxster. Como dizem, racing improves the breed, corridas aperfeiçoam a marca.
A Porsche mantém sua tradição e suas origens, mesmo tendo um ou outro modelo ligeiramente fora do padrão tradicional do 911. O filme promocional abaixo resume muito bem a empresa e sua filosofia.
“… A estrada que escolhemos era sinuosa, íngreme, exigente, empoeirada e fascinante. Metro após metro.
Foi assim que encontramos nosso caminho, e nos tornamos o que somos. Paixão, arte e alma. A coragem de atacar, e de vencer.
É assim que heróis nascem. E novos sonhos. E eles acabam rápidos se paramos de procurar, para cada idéia.
Então nós continuamos reinventamos nós mesmos, para onde o vento sopra, e ainda nos mantemos verdadeiros com nós mesmos.
Desafiamos a montagem de cada parafuso, mas nunca nossas origens.
Começamos de novo e de novo, com performance inteligente e vontade. Para isso, damos o máximo, o que acende nossa chama, o que acreditamos, cada fibra de nosso ser, e com engenharia. Estes somos nós…
… Há uma palavra que resume tudo isso. Identidade.”
MB