Imagine que um consumidor — preocupado com a segurança veicular — resolva comprar um Renault Duster. Ele pertence ao reduzido grupo a não achar que “acidente só acontece com os outros”…
Consulta então a tabela de avaliações do Latin NCAP, uma entidade uruguaia que classifica automóveis em função da proteção que oferece aos passageiros. E vai em frente na compra do Duster que tem quatro das cinco estrelas possíveis. E três na proteção específica para crianças. O suve da Renault está, portanto, entre os mais seguros do mercado.
No dia seguinte, o vizinho o vê no carro novo e comenta: “Você não se preocupa com segurança? O Duster tomou bomba no teste do Latin NCAP e não ganhou nenhuma estrela na avaliação. Está entre os piores do mercado sob este aspecto!”
O ex-feliz proprietário não entende nada: afinal, o Duster é seguro ou não? Tem ou não as quatro estrelas que me convenceram ontem a comprá-lo?
O carro da Renault é mais um a sofrer com as inconsequências do Latin NCAP, que o testou em 2019 e realmente lhe classificou com 4 estrelas.
Entretanto, em 2020, a entidade uruguaia “subiu a régua” e aumentou as exigências. Ela está correta e a decisão é incontestável. Os carros devem mesmo oferecer segurança crescente para os passageiros. Ela tem que ser apoiada sob este prisma.
Mas, inexplicavelmente, o Latin NCAP testa novamente o mesmo Duster, aplicando as exigências do novo protocolo. Uma postura irresponsável, pois sabe que fábrica nenhuma tem condições de introduzir modificações complexas em doze meses.
Qualquer exigência que se faça aos fabricantes de automóveis e que implique em novo projeto, novas tecnologias e processos, concede um prazo razoável que pode variar de 3 a 6 anos.
É assim quando o governo exige equipamentos de segurança como ABS, bolsas infláveis ou ESP ou ESC (controle de estabilidade) ou qualquer outro que demande alterações estruturais, de projeto, do sistema eletrônico e mecânico.
Também os planos de redução de emissões (Proconve) ou Inovar-Auto (eficiência) são estabelecidos anos antes de a exigência entrar em vigor. E depois de exaustivas reuniões entre governo, fabricantes, fornecedores, associações e analisadas as características de cada mercado, do motorista, da sociedade, das rodovias, da manutenção, etc.
O Latin NCAP ainda tem a cachimônia de “esclarecer” que o resultado de um teste com novos protocolos é registrado com estrelas de outra cor, como se o consumidor percebesse tamanha sutileza.
Afinal, o Duster é realmente inseguro?
Além de cumprir (é óbvio) todas as exigências da legislação, ele vai até além oferecendo controle eletrônico de estabilidade (ESP), alerta de ponto cego, câmera Multiview e outros.
Não se coloca em questão aqui a confiabilidade dos testes do Latin NCAP, mas sua falta de critério ao testar duas vezes o mesmo automóvel sem se conceder um prazo razoável para a fábrica adequá-lo aos novos protocolos. É óbvio que, se o carro é o mesmo mas enfrenta um padrão superior de exigência, vão-se as estrelas. Sob este prisma, nada justifica sua postura.
O que não tem sentido e confunde o mercado é, de um dia para outro, o mesmo modelo despencar de quatro para zero estrela. Na Europa e nos EUA, as entidades correspondentes ao Latin NCAP não “jogam contra a parede” o mesmo carro logo depois de se mudarem os protocolos.
Não somos advogados de defesa de fabricante nenhuma, pelo contrário, mas existem outras aberrações praticadas pelo Latin NCAP, que as prejudicam e confundem irresponsavelmente o consumidor.
Ela publica no Brasil resultados de testes de modelos comercializados em outros países da América do Sul e com legislação diferente da nossa.
Deu bomba no Ford Ranger da Colômbia onde não são obrigatórios as duas bolsas infláveis. O mesmo com o Kia Picanto, sem esclarecer que o carro não é o mesmo vendido no Brasil. Também o novo Hyundai HB20 perdeu inexplicáveis estrelas em testes do Latin NCAP aplicados em dois modelos semelhantes.
Por essas e por outras, o editor-chefe deste AUTOentusiastas, Bob Sharp, até se recusa a publicar resultados do Latin NCAP, por considerá-los totalmente inconsistentes.
É importante a existência de uma entidade independente para aferir e divulgar o nível de proteção aos passageiros de cada automóvel. E também de se aumentar gradativamente estas exigências.
O que se questiona é acusar qualquer fabricante de omissão na segurança veicular a partir da mudança de protocolos dos testes sem a concessão de um prazo mínimo para adequar seus modelos.
A omissão, no caso, é da Anfavea (associação das fabricantes), do governo brasileiro e de órgãos não governamentais que deveriam estabelecer critérios para evitar arbitrariedades de entidades estrangeiras descompromissadas com a realidade de nosso mercado, que prejudicam nossas empresas e confundem nosso consumidor.
BF
A coluna “Opinião de Boris Feldman” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.
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