Noto há tempo veneração ao motor V-8 por boa parte dos nossos leitores, às vezes exagerada. como se fosse o único motor que valesse a pena ter sob o capô. Quando procuro explicar que não é bem assim, até atritos ocorrem. Um leitor antigo e eu, por exemplo, discutimos muito no espaço de comentários e ele até deixou de comentar. Se parou de ler o AE, impossível saber, mas se ele voltar comentar será bem recebido.
A questão toda se resume na célula de potência — cilindro, pistão e cabeçote — do motor e quanto de ar é admitido nela, Quanto mais ar, mais combustível (energia) pode ser introduzido nela observando a relação ar-combustível ideal, a chamada relação estequiométrica, a que proporciona a queima completa do combustível.
A prática e o conhecimento concluíram que a célula de potência tem limites de tamanho (cilindrada), como 165 cm³ nos kei-cars japoneses e 800 cm³ no Pontiac Tempest de 1961/1963, ambos de 4 cilindros e com cilindradas totais de, respectivamente, 660 cm³ e 3.200 cm³.
Portanto, quanto mais células de potência, melhor, daí o número de cilindros ser determinante na potência do motor. Na história o que se viu foi o aumento do número de cilindros, chegando até 16, como no Cadillac de 1930. Todavia, quanto mais cilindros, maior o tamanho físico do motor e o problema de como acomodá-lo no seu compartimento. É fácil imaginar o problemão de ter que instalar no automóvel um motor de 16 cilindros em linha. É aí que entra a solução de “cortar” o motor em dois ou três pedaços
No caso de 8 cilindros, vimos surgir a arrumação em “V” no americano Marmon em 1904, mas foi preciso chegarmos a 1910 com o francês De Dion-Bouton na questão de produção em série. Mas estrondo mesmo foi a chegada do Ford V-8 em 1932, em plena depressão econômica, levando à fama de força a que persiste até hoje e que me inspirou a ser o tema desta coluna.
A maneira de “cortar” o motor tem variações como 8 cilindros horizontais e opostos no Porsche 804 de F-1 em 1962 ou 12 cilindros em “W”, três bancadas de 4 cilindros (Audi A8 W-12, 2001) ou 4 bancadas de 4 cilindros (Bugatti Veyron W-16, 2005). Sem esquecer motores de 2 cilindros horizontais e opostos, “marca registrada” das motocicletas BMW, 4 cilindros horizontais e opostos (VW) e 6 cilindros de mesmo arranjo (Tucker, 1948, e Porsche 911, 1963).
Eu poderia seguir com mais exemplos de configurações de motor, como os radiais descritos na matéria de hoje do Daniel Araújo, mas a coluna ficaria longa demais. Até aqui é mais que suficiente para o leitor ou leitora entender o que quero dizer: não importa a configuração do motor, e sim a eficiência da célula de potência. Mas não é só.
O carregamento forçado
Tudo o que falei até aqui refere-se à aspiração do motor, o quanto de ar chega à célula de potência gerado unicamente pelo movimento do pistão do seu ponto morto superior (PMS) ao seu ponto morto inferior (PMI) determinado pelo raio da manivela no virabrequim (chamado também de árvore de manivela). Com esse movimento é criada uma depressão no interior da célula que a pressão atmosférica trata de fazer ar adentrar a ela. Mas ocorre que o volume do espaço entre o PMS e o PMI — a cilindrada — nunca é plenamente preenchido por haver perdas de fluxo no trajeto do ar.
Para contornar essa perda criou-se o supercarregador (Mercedes-Benz 6/25/40 hp de 1921) e mais tarde (1961), o turbocarregador (Oldsmobile F-85). Com esse recurso o número de cilindros e sua configuração, por exemplo, V-8, passam a ser secundários. Um bom exemplo disso é o Brabham BT52 de F-1 com motor BMW 1,5-litro de 4 cilindros turbocarregado, superar os motores V-8 Cosworth de 3 litros, ajudando Nélson Piquet a conquistar seu segundo título mundial (de três) em 1983.
Hoje para fins de enquadramento em classe de cilindrada nas competições, a FiA (Federação Internacional do Automóvel) considera um motor super ou turbocarregado como tendo cilindrada 70% maior. Por exemplo, desejando competir na classe de cilindrada até 1.600 cm³, e sendo o motor turbocarregado, sua cilindrada pode ser de no máximo 1.600 ÷ 1,7 = 941,1 cm³.
O editor associado Juvenal Jorge testou o Mustang 2,3 EcoBoost 4-ciilindros de 314 cv e 44,2 m·kgf nos EUA há seis anos e é só elogios. O importante é a célula de potência.
Com isso considero respondida a pergunta-título, o motor V-8 é uma questão de gosto, pessoal — um direito, afinal —, a emoção e a razão ficaram para trás. Muitos curtem o som de borbulhar dos V-8, causado unicamente pelo virabrequim cruzado. Com virabrequim plano, como no Ford Mustang Shelby GT 350 de 5,2 litros e 533 cv, o borbulhar some e dá lugar ao “som liso” de Ferrari.
Quando a DaimlerChrysler lançou seu hot rod “de fábrica”, o Plymouth Prowler, em 1997, houve uma grita geral nos EUA por o motor não ser V-8, tolice total: era um V-6 de 3,5 litros, bloco e cabeçotes de alumínio, 217 cv (mais tarde 257 cv), capaz de acelerar de 0 a 96,5 km/h em 5,9 segundos. Mas não era V-8…
BS
A coluna “O editor-chefe fala” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.