Os anos 1930 foram marcados por uma grande busca pelo carro de motor traseiro. É aquilo que em alemão se chama Zeitgeist, espírito do tempo. Foi quando surgiram o Tatra e o KdF-Wagen — estranho nome do “carro do povo” alemão que na língua de Goethe se escreve Volkswagen e que acabou virando marca — e o Mercedes-Benz 130H. Do outro lado do Atlântico não foi diferente, Ford e General Motors também tinham em mente produzir carros com essa configuração. Certamente ajudou na idéia do motor atrás o sucesso dos monopostos de corrida, então chamados carros de Grand Prix (Grande Prêmio) Auto Union P-Wagen a partir de 1933, carros projetados por Ferdinand Porsche que tinham motor traseiro-central.
Henry Ford, dono da fabricante que levava seu sobrenome, apesar do sucesso de seus produtos, entre eles o carro de motor V-8 lançado em 1932, em plena recessão econômica nos Estados Unidos e no mundo decorrente da quebra da Bolsa de Nova York em 18 de setembro de 1929, dia que ficou conhecido como Quinta-Feira Negra, numa ousadia que até hoje serve de exemplo de como vencer períodos difíceis lançando produtos atraentes, tinha muito interesse por novidade, fazia parte da sua personalidade. Uma dessas novidades era o carro de motor traseiro.
Tanto foi assim que Ford resolveu ir adiante com uma proposta do estilista holandês radicado nos EUA, John Tjaarda, a de um sedã grande com (seu) motor V-8 traseiro-central longitudinal, exibiu maquetes em exposições que geraram interesse do público e mandou construir dois protótipos funcionais. Mas custos com novas ferramentas levaram o projeto a ser abortado, surgindo no seu lugar, como grande novidade da fabricante, o Lincoln Zephyr V-12, de motor dianteiro, em junho de 1935, carro de grande sucesso. Mas Henry Ford não abandonou a ideia de um carro de motor traseiro.
Naquele mesmo ano Ford obtinha patente para um carro de motor traseiro transversal formando conjunto com a transmissão e localizado para trás da linha de centro das rodas. Uma melhoria nessa configuração, patenteada em nome de Ford no final de 1936, gerou manchete na edição de domingo 3 de janeiro de 1937 do New York Times: “O motor pode ir para a traseira”, seguindo-se ampla reportagem sobre os planos de Ford.
Não era só papel. Já havia um protótipo, código 92-A, com motor V-8 de 60 cv, pronto em fins de 1937. Era a proposta de um Ford pequeno, mas que não foi adiante. Não havia problemas específicos nele, mas eram tantas soluções radicais que mais se pareceriam com os do Tucker em muitos aspectos. Seriam anos de desenvolvimento para que o carro pudesse ser um sucesso comercial, considerou a Ford.
Mas o Zeitgeist permanecia naqueles anos 1930, a ideia de carros de motor traseiro fervilhava em Detroit. No final de década o tema ficou mais evidente quando se soube do Volkswagen (KdF-Wagen, bem-entendido) e, coincidentemente, a Ford estava trabalhando num chassi que era muito parecido com o do carro alemão; a suspensão era similar.
Duas transmissões estavam sendo desenvolvidas separadamente pela Ford e eram ideias do próprio Henry, que estava chegando à sua própria conclusão de como os problemas de um carro de motor traseiro haviam sido resolvidos por um simplório engenheiro alemão que o havia visitado três anos antes: Ferdinand Porsche, que chegou a aventar a possibilidade de a Ford montar o carro do povo de Porsche nos Estados Unidos, pela qual Henry Ford não se interessou. Mas agora que o ‘volkswagen’ era de domínio público e só se falava bem dele, Ford decidiu que era a hora de produzir o seu.
O velho Ford disse ao seu engenheiro Albert Roberts: “Faça daqui o seu quartel-general por um tempo, foi aqui que fiz meu primeiro carro e é onde farei meu último. Faça-o pequeno e simples. Coloque um motor de quatro cilindros pequeno na traseira, use um câmbio planetário para ser controlado por pedais.” Esse “daqui” era uma reprodução da pequena oficina da rua Bagley, onde Ford construiu seu primeiro carro, que fora montada dentro do complexo Greenfield Village.
Lá, Roberts e outro engenheiro construíram o chassi. As peças foram feitas em oficinas espalhadas para que ninguém soubesse como seria o carro, incomum de um extremo a outro. A suspensão traseira era De Dion e o motor, aparafusado à seção central, ficava em balanço atrás do eixo traseiro, sem fixação atrás, e podia ser retirado e substituído em poucos minutos removendo seis parafusos; o comando do acelerador era pneumático.
Não havia longarinas de chassi, em vez disso havia uma espinha dorsal no centro. A direção era por setor e sem-fim. Os feixes de molas eram transversais e montados altos para reduzir a rolagem nas curvas. O transeixo continha o câmbio planetário. O estepe ficava alojado na frente para servir de parachoque pneumático.
O chassi funcionou muito bem. Henry Ford deu uma volta nele, como passageiro (foi colocado um banco inteiriço). O consumo era baixíssimo, 22 km/l. Mesmo que depois recebesse uma carroceria, o protótipo de Roberts seria um carro pequeno bem econômico, um “carro do povo” dos EUA que viria a calhar diante do racionamento de gasolina nos anos de guerra que viriam.
A ideia de produzir tal carro ia além dos projetos pessoais de Henry Ford. O fato, porém, é que esses carros estavam sempre envoltos numa miríade de ideias radicais que dificilmente se materializariam nos EUA. Por sua vez, o carro de Ferdinand Porsche era tão radical quanto, era repleto de soluções de engenharia heterodoxas, mas o europeu estava mais habituado a esse tipo e porte de carro.
Outro e mais assustador obstáculo impediu o lançamento do Ford pequeno. Toda vez que se chegava ao ponto de falar sério a respeito de um carro pequeno na empresa, vinha a questão do mercado de carros usados. Um carro pequeno novo pelo preço de um Ford usado desviaria o foco dos consumidores desse último e desse modo prejudicaria a venda de carros novos grandes? O risco sempre parecia grande demais para permitir tal experiência. E Ford acabou não tendo o seu carro de motor traseiro.
Só a GM, pela divisão Chevrolet, o teria, vinte anos depois, o Corvair.
BS