A indústria brasileira de automóveis possui uma história muito rica, mesmo que pouco expressiva em termos de volume de vendas ou lucro se comparado com os grandes fabricantes mundiais. O nosso amigo MAO já mostrou uma boa parte do que o Brasil criou nos seus posts de Dez Mais.
Além da fabricação de automóveis únicos e réplicas, nossa história automobilística também é grandiosa no automobilismo. Desde os primórdios do automóvel no Brasil, as corridas estão presentes nos principais círculos relacionados. Carros importados foram trazidos ao país para competir, com grande sucesso, mas também os modelos nacionais tiveram destaque.
A engenharia, e por que não dizer engenhosidade, dos brasileiros em desenvolver seus carros é algo incrível. Muitas vezes com poucos recursos, pessoas com capacidade criativa excepcionais fabricaram seus próprios modelos e competiram com louvor e sucesso. Muitos foram adaptações de modelos importados, e alguns foram criações puramente tupiniquins.
A disposição e paixão que as pessoas dedicaram às suas criações merecem ser lembrados, e podemos citar aqui alguns dos grandes modelos que marcaram a história do nosso automobilismo. Muitos não aparecem aqui, mas não são menos importantes, pois todos os que tentaram e fabricaram seus próprios carros já são merecedores de mérito. Não há uma ordem específica nas citações abaixo.
– Karmann-Ghia-Porsche Dacon
A Dacon foi uma concessionária VW de São Paulo, e a equipe de competição veio com o seu fundador, Paulo Goulart. O primeiro Karmann-Ghia com mecânica de Porsche 356C foi montado e competiu nas mãos de Chico Landi, com sucesso eminente. A equipe propriamente dita veio a seguir, com a construção de mais carros, ainda mais específicos para pista.
Dois carros com motor 1,6-litro de Porsche 356C e dois carros com motor 2-litros de 904 foram feitos. Para aliviar peso, os KG de corrida da Dacon eram feitos de compósito de fibra de vidro. Isso mesmo, de plástico. Este era o jeito de se identificar um KG Dacon de corrida. As largas bitolas traseiras e a entrada de ar na tampa do motor mostravam que o carro não era fraco não. Com a potência e confiabilidade dos motores Porsche, os carros e pilotos da Dacon sempre estavam entre os favoritos em qualquer corrida.
Talvez a mais marcante vitória dos KG-Porsche tenha sido na 1.000 km de Brasília de 1967, com um 1-2-3 da equipe Dacon. Em primeiro, Rodolpho Costa e Lian Duarte, segundo o carro de Emerson Fittipaldi e Chiquinho Lameirão, e em terceiro o carro de Wilsinho Fittipaldi e José Carlos Pace. Ao longo de sua existência, a equipe Dacon rivalizou com a Willys e com a Vemag de igual para igual, em uma época de desenvolvimentos e carros próprios.
– Maverick Berta
Nos anos 1970, o poder da equipe Hollywood, a maior equipe de competição da época, era impressionante. Competindo em praticamente todas as principais categorias do Brasil, e com sucesso, os carros com as cores da Hollywood ficaram famosos. Talvez o mais famoso deles seja o Maverick-Berta, carro da Divisão 3, hoje em dia restaurado e residindo no museu do automobilismo de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul.
O preparador argentino Oreste Berta foi contratado para modificar um Maverick para a equipe. O motor V-8 foi largamente modificado, com cabeçotes Gurney e quatro carburadores Weber. Os coletores de escapamento foram dimensionados de tal forma que saíam atrás das rodas dianteiras para os escapes laterais. Para melhor distribuição de peso, o motor foi recuado o máximo possível dentro do cofre. Aproximadamente 450 cv saíam daquele motor, e para colocar essa cavalaria toda no chão, pneus traseiros de 14 polegadas foram usados em uma suspensão toda modificada.
As feras brasileiras como Luiz Pereira Bueno e Tite Catapani guiaram o Berta em diversas corridas ao longo de 1974 e 1975. O Maverick-Berta não foi fabricado no Brasil, tampouco por um brasileiro, mas pela sua representatividade o incluí na lista em função de seu valor histórico e apreciação do entusiastas.
– Avallone-Chrysler
Antônio Carlos Avallone foi um nome muito conhecido no meio das corridas brasileiras desde os anos 1970. Foi ele quem importou um Lola-Chevrolet T70 para correr nos campeonatos locais, rivalizando principalmente com a equipe Hollywood e o Porsche 908. Mas Avallone não era apenas um homem de comprar carros e correr. Ele queria correr e vencer em seu próprio carro.
E assim nasceu o primeiro protótipo Avallone, no começo dos anos 1970, que depois evoluiu para o mais famoso deles, o Avallone-Chrysler V-8. Com motor Chrysler central, a carroceria quase que copiada inteiramente de um Lola T222, o novo protótipo era páreo para rivalizar com os Porsches. Inscrito na Divisão 4 do campeonato brasileiro, o Avallone-Chrysler foi pilotado por muitos, entre eles Jan Balder, Pedro Muffato, Chiquinho Lameirão e o próprio Avallone. Avallone vendeu seus carros para pilotos particulares, como uma forma de ajudar nos custos, e manteve uma equipe de fábrica com seus modelos mais atualizados.
A iniciativa e coragem de enfrentar os importados com um carro de projeto e construção própria faz deste Avallone uma referência importante na nossa história do automobilismo, pois cada vez mais os carros importados de nível internacional estavam sendo usados, e um desafiante brasileiro vencedor fez muito bem para nossa indústria de construtores locais.
– Carretera Chevrolet-Corvette nº 18
A lendária carretera nº 18 de Camillo Christófaro foi talvez a maior representante destes carros no Brasil. Uma carretera nada mais era do que um carro dos anos 1930 e 1940 modificado e com um motor V-8 mais moderno. Desde os tempos de Breno Fornari e dos irmãos Andreatta, as carreteras foram os carros de corrida mais rápidos do país.
Feita com base em um Chevrolet 1937 modificado, com teto rebaixado e entreeixos reduzido, a carretera nº 18 tinha diversos componentes de carros muito modernos para a época. O motor Chevrolet 327-pol³ de Corvette foi preparado para passar dos 400 cv, com pistões, comando, bielas, tudo novo e especial. Para melhorar a aerodinâmica da frente do carro e o arrefecimento do motor, um radiador maior foi montado no carro, e um bico de alumínio foi feito para melhor direcionar o ar ao radiador e ao longo da carroceria.
A suspensão traseira De Dion veio de um Ferrari 250 Testarossa, bem como os freios dianteiros a disco. Como um bom carro de corrida artesanal, a cada corrida e a cada ano, melhorias eram feitas e o carro se transformava. Ao longo da sua vida, ele venceu diversas corridas e campeonatos, e hoje descansa em uma coleção, já parcialmente depenado.
– GT Malzoni
A história do Malzoni e da própria Puma estão intimamente ligadas ao automobilismo nacional. Quando Rino Malzoni criou seu pequeno carro esporte em sua famosa fazenda em Matão, a Vemag logo teve interesse no seu projeto, já pensando em utilizá-lo nas pistas. Os DKW eram pesados, e o Malzoni, mesmo o primeiro sendo de metal, era mais leve.
Após os testes, o potencial do pequeno carro de Rino fez crescer o investimento. Mais carros foram fabricados, agora em compósito de fibra de vidro para reduzir o peso. Com o uso do material, o Malzoni de corrida pesava pouco mais de 700 kg. O pequeno motor de três cilindros dois-tempos foi preparado pelo time de competição da Vemag. O engenheiro da equipe, Otto Kuetner, conseguia tirar incríveis 105 cv do motor de 1,1 litro.
O Malzoni foi muito bem nas suas participações em corridas nacionais. Pilotos como Jan Balder, Emerson Fittipaldi, Marinho, Norman Casari e Chico Lameirão foram os valentes pilotos a desafiar as carreteras V-8 com o pequeno Malzoni. Chiquinho Lameirão ainda conseguiu a respeitável proeza de bater o recorde da pista antiga de Interlagos com o tempo de 3:48,06 que foi dois segundos mais rápido que o recorde anterior, de Juan Manuel Fangio a bordo de um Maserati 300S.
A maior disputa que os Malzoni tiveram foi na 1.000 Milhas de 1966, onde tiveram grandes chances de vencer a mais importante corrida nacional em um carro projetado e construído no Brasil, mas um problema mecânico deixou que a vitória escapasse para Camillo Christófaro e sua carretera nº 18, com o segundo, terceiro e quarto lugares para os três Malzonis do ex-departamento de competição da Vemag (leia história). equipe DKW. O Malzoni foi o embrião do Puma como o conhecemos, nascendo nas pistas para depois migrar para as ruas, e foi feito com mão de obra brasileira e idéias brasileiras, apenas baseado no DKW.
– Protótipo Willys Mk I (Bino)
A equipe Willys era uma potência no automobilismo brasileiro dos anos 1960, posteriormente com suporte da Ford e o pulso forte do comandante Luiz Antônio Greco. Em 1966, foi construído um protótipo de competição com base em um Interlagos berlineta, chamado de Protótipo Willys 1300, o número em alusão ao motor 1,3-litro da Alpine-Renault. O carro era muito ruim na pista. Instável e inseguro por conta de seu entreeixos curto demais (2,1 m) foi prontamente abandonado.
Para repor o carro que não tinha condições de competir, e com pouco tempo disponível, a equipe investiu na modificação de dois Alpines importados. A carroceria foi ajustada pelo mestre Toni Bianco para minimizar os problemas de superaquecimento do motor e de freios. As bitolas foram aumentadas para melhorar o desempenho em curvas dos carros, bem como a suspensão mais bem ajustada. Estes dois carros foram os Protótipo Willys Mark I.
Os dois carros foram muito bem nas diversas corridas que participaram, inclusive com a lendária dobradinha na 1000 Milhas Brasileiras de 1967, com vitória de Luizinho Pereira Bueno e segundo lugar de Bird Clemente. O nome Bino veio no modelo Mark II, uma homenagem ao piloto Christian Heins, apelidado de Bino.
– Copersucar FD-01
O primeiro carro de Fórmula 1 brasileiro. Este foi o slogan que povoava as mentes dos irmãos Fittipaldi nos anos 1970. Emerson já era bicampeão mundial pela Lotus e pela McLaren e Wilsinho piloto da Brabham desde 1972. A empreitada de maior alcance do automobilismo brasileiro começou com alguns desenhos bem arrojados de Ricardo Divila, projetista paulista, que viria a ser o pai do projeto.
A aerodinâmica do carro era um diferenciador, com o máximo de componentes cobertos possíveis para reduzir o arrasto causado pelo atrito as peças com o ar. Com o estudo avançado da aerodinâmica em parceria com a Embraer, a carroceria foi definida em túnel de vento. Novas posições de radiadores e asas foram aplicadas no projeto com base no que o túnel de vento mostrava. O problema é que o túnel de vento usado para projetar aviões não serve 100% para se projetar um carro. O piso não era móvel e no caso de um carro que chega a mais de 250 km/h com facilidade, qualquer detalhe faz a diferença. E a diferença foi que o FD01 não era um bom carro. Mesmo com a conhecida e confiável motorização Cosworth, o Copersucar não emplacou.
Após diversas tentativas e modificações, o carro começou a dar sinais de melhora, mas não chegou perto de ser um sucesso. Mesmo sem grandes resultados, o FD01 marcou a nossa história como o primeiro F-1 brasileiro, projetado, construído e pilotado por brasileiros (e um italiano). Logo o 01 cedeu espaço ao FD02 e aos conseqüentes modelos da equipe, mas vai ficar marcado na história para sempre.
– DKW Vemag Carcará
Nos anos 1960, a Vemag de Jorge Lettry queria ser a primeira a estabelecer o primeiro recorde sul-americano de velocidade em terra. Seria o último feito de Lettry no comando do departamento de competição da Vemag. Juntamente com outros grandes nomes como Norman Casari e Marinho, foram os responsáveis por um marco nos livros dos recordes brasileiros. Utilizando como base um chassi de Fórmula Junior, Anisio Campos e Rino Malzoni criaram uma bela carroceria aerodinâmica de alumínio que permitiria ao Carcará atingir velocidades mais altas que as de um F-Júnior convencional.
O pequeno motor DKW de 1,1-litro e 105 cv preparado pela equipe de competição da Vemag, sob a coordenação do mecânico-chefe e amigo Miguel Crispim, foi valente o suficiente para que o pequeno carro atingisse incríveis 214,47 km/h no teste do quilômetro lançado.
Assim como o seu “primo” GT Malzoni, o Carcará é um dos grandes exemplares da engenharia e da habilidade dos técnico, pilotos e projetistas da indústria e equipes nacionais. Projetado, construído e testado no Brasil, é um dos nossos orgulhos. A história mais detalhada do feito do Carcará pode ser visto aqui no Ae, contada por quem esteve lá, Bob Sharp.
– Opala stock car
Hoje em dia, quando falamos de Stock Car brasileira, pensamos nos carros V-8 todos de mesma fabricação e com diferenças estéticas nas “bolhas” de plástico que imitam carrocerias de carros de rua. São máquinas bem projetadas e rápidas, mas fugiram do que deveria ser um “stock car”, ou em uma tradução simplista, carro original.
No passado, o stock car eram carros de produção preparados para corrida, com chassi e carroceria originais, apenas com pequenas alterações para competição. Os Opalas foram por muitos anos carros usados na categoria, criada em 1979, mas desde os tempos de Divisão 1 eles são utilizados. O motor de seis cilindros perdurou por anos afim, passando até pela época dos Omegas nos anos 1990. Nos Opalas, o motor recebia preparação especial, assim como a suspensão para ser mais adequada à pista.
Nos anos 1970 e começo dos 1980, os Opalas tinham poucas modificações de carroceria. Eram praticamente os carros de rua pintados nas cores dos patrocinadores, passando até no fim dos anos 1980, onde os carros receberam kits aerodinâmicos que remetiam aos Dodge Daytona americanos. A Caio, fabricante de carrocerias de ônibus, fabricava as carrocerias que eram montadas no monobloco do Opala. Em 1991, um Opala foi o recordista brasileiro de velocidade nas mãos do Fábio Sotto Mayor, com medição de 303 km/h na rodovia Rio-Santos próximo a Bertioga.
– Aldee Spyder
Por anos, o automobilismo nacional esteve em baixa. Poucas categorias, poucos pilotos, tudo muito caro e complicado. Até que veio o Aldee Spyder. A Aldee, empresa feita por Almir Donato, já tinha um modelo fechado correndo desde 1990, baseado no carro de produção de mesmo nome. O Spyder veio posteriormente, em 1999.
A simplicidade do Spyder fez dele um sucesso, não apenas em termos de custos reduzidos, mas também de diversas versões modificadas para competir em provas de resistência. A categoria Spyder foi criada, como uma monomarca, e que teve muitos adeptos por anos.
Equipado com motor traseiro-central e tração traseira, geralmente os AP quatro cilindros, o Spyder era leve e o bom chassi, aliado aos pneus slick, fazia dele um carro rápido. Ao longo dos anos, novamente graças ao baixo custo e à grande quantidade de carros fabricados, muitos receberam motores turbo, motores Chevrolet, até mesmo um motor Wankel 1,3-litro.
Até hoje o Spyder faz sucesso nas categorias paulistas, pois requer poucas peças caras e a relação custo-desempenho é ótima. Podemos arriscar dizer que o Spyder é um dos responsáveis por manter o automobilismo paulista vivo até hoje, passando por vários períodos de crise.
MB