Por que chamar um veículo de “A Coisa”? Para entender, é necessário ler essa história que teve seu início há 50 anos.
Em 1968 o utilitário todo-terreno DKW Munga (aqui chamado de Candango a partir de 1960 em homenagem aos obreiros de Brasília, assim chamados), que era o veículo militar leve oficial das Forças Armadas Federais Alemãs, foi descontinuado e se abriu uma lacuna que tinha que ser urgentemente preenchida.
A primeira opção seria o Europa-Jeep, um projeto iniciado na década de 60, de um utilitário anfíbio, 4×4, com motor multicombustível que acabou não saindo da fase de projeto. Três consórcios (sem a participação da Volkswagen) entraram na competição para desenvolverem protótipos.
Um dos consórcios para a construção do Euro-Jeep foi o Fiat-MAN-Saviem, empresas, na ordem, italiana, alemã e francesa:
Mas as Forças Armadas Alemãs não puderam esperar pelo resultado do projeto que, aliás, acabou sendo cancelado tempos depois.
Na busca das Forças Armadas Federais Alemãs por uma alternativa para cobrir a lacuna do DKW Munga, a escolha recaiu sobre a Volkswagen. Ela deveria construir, com base no Fusca, um carro multiuso como o Munga especialmente compatível com situações fora de estrada. No projeto, a Volkswagen pôde contar com o desenvolvimento feito na Austrália, apresentado em 1967, o Country Buggy, desenvolvido por técnicos da Volkswagen na fábrica australiana em Clayton, Victoria.
Os engenheiros da VW australiana se basearam no utilitário leve 4×2, o VW tipo 82 Kübelwagen, da Segunda Guerra Mundial.
Em setembro de 1969, no Salão de Frankfurt, o VW 181 se apresentou como um veículo militar no estilo do Kübelwagen, apenas um pouco mais moderno, porém maior e mais pesado. A carroceria em forma de caixa com quatro meias-portas foi adaptada ao propósito e estilo da época. Ele recebeu o nome Kurierwagen (carro mensageiro), na tentativa de evitar uma conexão com o nome Kübelwagen das Forças Armadas do III Reich. No entanto, isto de nada adiantou, pois ele rapidamente ganhou o apelido de Kübel (forma abreviada de Kübelwagen) entre os soldados…
O VW 181 em versão militar trazia as modernas e compactas lâmpadas de blecaute na dianteira e na traseira, indicadas por setas amarelas (Fonte: Wikipedia):
Um folheto da versão militar do VW 181 produzido pela Volkswagen do México mostrando suas características principais — que mantiveram os padrões exigidos pelas Forças Armadas Federais Alemãs. No México a versão civil deste veículo era chamada de VW Safari (Fonte: The Samba):
Como no Fusca (e no Kübelwagen), a carroceria era aparafusada a um chassi de tubo central com bandejas laterais incorporadas (foi usada uma plataforma de Karmann Ghia Tipo 14 adaptada em alguns pontos). As longarinas da carroceria garantiam a rigidez torcional necessária. Para outros componentes, foi usada a tecnologia robusta existente. Do Fusca 1500 foram usados: o motor boxer de 1,5 litro arrefecido a ar de 44 cv, embreagem, instrumentos, direção e o tanque de 40 litros. O transeixo com caixa de redução na extremidade dos semieixos vieram, ligeiramente modificados, da Kombi alemã de 1967.
O uso das caixas de redução nas rodas traseiras permitiu aumentar o vão livre do solo tal qual no Kübelwagen. Quatro freios a tambor ofereciam a frenagem necessária. Os ocupantes eram protegidos por uma capota sem forro de cloreto de polivinila. As janelas eram de encaixar, feitas em policarbonato; que quando não estavam em uso eram guardadas em uma bolsa especial acomodada no porta-malas. O para-brisa podia ser rebatido para a frente e travado nesta posição (como pode ser visto no folheto acima, repetindo o que havia no DKW Munga).
Quando necessário, o interior era aquecido exclusivamente por um aquecedor a gasolina nos modelos europeus; os últimos modelos mexicanos passaram a ter um aquecimento semelhante ao do Fusca, que ficava no porta-malas (seta vermelha na foto abaixo) com o estepe e a bolsa para guardar as janelas de encaixar de poliuretano (seta amarela):
Mudanças maiores ocorreram em 1973: a taxa de compressão do motor foi aumentada e ele, mantendo a mesma cilindrada, passou a desenvolver 48 cv. A suspensão por semieixos oscilantes foi substituída pela de braços semiarrastados e exigiu semiárvores com juntas homocinéticas nas extremidades, como nos Super Beetles 1302 e 1303. Com isto foram retiradas as caixas de redução das rodas traseiras e passou a ser usado o transeixo da Kombi da época. Em decorrência disto se perdeu no vão livre em relação ao solo e as condições de tração em terrenos difíceis pioraram bastante. A medida dos pneus radiais foi alterada de 165SR15S para 185SR14S. O tipo de aquecimento foi modificado, sendo retirado o aquecedor a gasolina.
Os veículos para as Forças Armadas Federais alemãs foram excluídos destas atualizações, em parte devido aos custos adicionais, em parte devido ao aquecimento auxiliar e ao sistema de escapamento padrão militar (com duas saídas laterais independentes, através do para-choque) que foram mantidos. Também foram mantidas as caixas de redução nas rodas traseiras — garantindo um torque maior nas rodas e mantendo o vão livre anterior. A versão civil havia ganho um silenciador transversal como no Tipo 1.
Quanto ao preço, o VW 181 estava num nível elevado em relação ao outros dois conversíveis da Volkswagen, o Fusca e o Karmann Ghia cabriolés. Clientes privados tinham que pagar 8.500 marcos alemães pelo VW 181. O preço adicional para se ter um diferencial autobloqueante era de 435 marcos alemães.
As Forças Armadas Federais da Alemanha encomendaram 15.275 veículos com a especificação militar interna „Pkw 0,4 t tmil 4×2“— (Pkw-carro; 0,4 t- 0,4 toneladas de carga útil; tmil-parcialmente militarizado; 4×2- quatro rodas, sendo duas motrizes). Esses veículos foram entregues no período de 1969 até o final de 1979 (sendo que os últimos foram importados do México).
Ele foi usado também pela Polícia Federal de Fronteiras na década de 1970, principalmente como veículo de patrulha na fronteira interna alemã. O THW — entidade civil de voluntariado em apoio técnico em catástrofes, encomendou 200 unidades, sendo a maioria usada no serviço de reconhecimento. Algumas unidades foram operadas pela Defesa Civil e Bombeiros.
Alguns exemplos de VW 181 em serviços de segurança alemães:
A produção do Kurierwagen começou na fábrica-mãe de Wolfsburg em 1968 com 16 exemplares pré-série. A produção em série foi então continuada a partir de outubro de 1969. Em março de 1974, 57.574 unidades haviam sido fabricadas lá. Posteriormente, a produção foi transferida para a fábrica Volkswagen em Hannover; lá, de abril de 1974 a julho de 1975, um total de 10.629 veículos deixou a linha de montagem. A última instalação de produção alemã com 2.323 unidades foi a fábrica Volkswagen de Emden (a produção final foi em janeiro de 1978). Na América, o Kurierwagen foi vendido com sucesso considerável. Entre 1970 e 1971 os chamados kits CKD foram exportados de Wolfsburg e montados no país receptor.
Um comentário de cunho histórico sobre o VW 181 que, de alguma maneira, descende do antigo Kübelwagen, e a sua aceitação nos Estados Unidos. Voltemos para os tempos da Segunda Guerra Mundial, quando os Kübelwagens tornaram-se apreciadas pilhagens de guerra, tanto que logo surgiu um manual em inglês para ajudar em sua operação e reparos rápidos.
Pois bem, antes do final da guerra a fábrica da Volkswagen foi severamente bombardeada pelos Aliados, seguido de sua ocupação inicialmente pelas tropas do 9º Exército Americano.
Com a guerra na Europa já terminada há cerca de dois meses, o jornal The New York Times publicou no dia13 de julho de 1945 uma nota com o título: Americans improve German jeep model (Americanos aprimoram modelo de jipe alemão). Inicialmente o choque: o que isto quer dizer? O Kübelwagen provou a sua qualidade e eficiência no campo de batalha e não sei o que os americanos podiam fazer para melhorar este projeto. Aliás, a nota não especifica o que foi melhorado.
Leia a tradução desta nota, que reproduz a visão de quem estava ganhando a guerra (que eu saiba, os americanos ficaram pouco tempo em Kdfstadt (cidade KdF) em Fallersleben, logo rebatizada Wolfsburg pelos ingleses. Pouco fizeram e logo passaram este “abacaxi” para os ingleses; estes sim “puseram a mão na massa” em grande estilo, salvando a fábrica de sua demolição):
Americanos aprimoram modelo de jipe alemão
Aprimorados pela técnica americana, os automóveis alemães conhecidos como Volkswagen estão saindo das linhas de montagem em Kdfstadt, na Alemanha, para substituir os veículos motorizados que estão sendo transferidos para a área do Pacífico, disse ontem o Brig. Gen Stewart E. Reimel, chefe do distrito de ordenança de Nova York.
Trabalhadores alemães sob a supervisão de engenheiros americanos estão construindo dez unidades por dia. O pico de produção antes do bombardeio desta fábrica foi de 150 unidades diárias.
O Volkswagen, projetado por ordem de Adolf Hitler como um carro popular de baixo preço, foi convertido em um veículo parecido com o jipe americano. A fábrica que produzia as unidades originalmente empregava 20.000 antes de ser capturada pelo Nono Exército Americano.
Construído para estar em conformidade com as especificações americanas, o Volkswagen estava sendo fabricado de acordo com um programa instalado por um funcionário alemão outrora empregado em uma fábrica de automóveis de Detroit; embora um terço da fábrica, incluindo uma seção que produzia asas de bombardeiro, tivesse sido destruído, a produção de automóveis continuou até que os americanos ocupassem o território.
Esta produção foi alcançada através do uso de peças manufaturadas em fábricas subsidiárias bem dispersas dentro de um raio de 50 milhas.
Embora o povo alemão pagasse milhões de marcos para subsidiar a fábrica da Volkswagen com base na premissa de que os produtos eram para consumo civil, o Exército confiscou toda a produção para fins militares.
Kdfstadt, que cresceu em torno da fábrica, derivou seu nome do movimento Kraft Durch Freude [Força Através da Alegria].
Hoje em dia é difícil afirmar isto com certeza. Mas pode ser que o contato com o “ancestral” do VW 181 tenha colaborado com a sua aceitação pelo mercado americano na década de 70.
O fato é que os americanos tiveram uma dificuldade inicial de enquadrar “aquilo” que mais parecia um cruzamento de um jipe com um bugue Meyers Manx”, e disto pode ter resultado o apelido “The Thing” ( “A Coisa”), que pegou imediatamente e deve até ter ajudado na sua aceitação.
Entre 1970 e 1971, kits CKD de VW 181 foram exportados de Wolfsburg e montados no México. A partir de 1972, surgiu o VW Safari (VW 182) que foi completamente fabricado no México. Os veículos originários desta produção podem ser reconhecidos pelas lanternas traseiras grandes que chamamos de “Fafá” e que nos Estados Unidos são conhecidas como “pata de elefante”, como as instaladas no Super Beetle 1303. Abaixo, algumas fotos do VW 182 produzido no México e exportado para os Estados Unidos (Fonte: Revista Stern):
Mas, desde o início de 1978, ainda foram construídos VW 181 no México para as Forças Armadas Federais alemãs com as lanternas traseiras da Kombi T1 originais. Na estrutura do túnel deles, abaixo do número do chassi estava o brasão da águia segurando uma cobra com suas garras (símbolo da República do México) com a nota “Hecho en Mexico“.
Uma curiosidade envolvendo VW 181 (ou 182?) da Marinha da Grécia. Veja nas fotos abaixo: pelas lanternas traseiras tudo indica um deles não era originalmente versão para uso militar (Fonte: The Samba):
O fim para o VW Safari veio nos EUA no início de 1975. As novas exigências regulamentares de segurança para veículos novos não puderam ser atendidas pelo VW Safári. No entanto, apesar da proibição nos EUA, que forçou a redução das vendas, ele continuou a ser produzido no México. Em 1980, apenas 695 veículos deixaram a linha de montagem em Puebla e em julho daquele ano a produção do VW 181 foi encerrada após 64.254 unidades. No período de 1968 a 1980, rolaram 140.768 veículos das linhas de montagem, o que superou as expectativas da Volkswagen (ele também foi montado em Jacarta, na Indonésia).
Meu amigo, o Marco Hammerand, alemão que agora mora em Pomerode, SC e têm uma simpática loja de peças para Fuscas e Kombis, inclusive importados, era sócio de um clube de VW 181 antes de vir para o Brasil e me enviou algumas fotos de um dos eventos do clube dele:
“Tratou-se de um evento peculiar chamado “Kübel versenken” (“Afundar o Kübel”), que, daquela vez, constou de um passeio em grupo até a cidade de Pagliamento, na Itália, onde passa o rio de montanha de mesmo nome, local que fica a cerca 450 quilômetros a sudeste de Munique.
A ideia era ir descobrindo os limites do jipinho, o que pode acabar com o carro atolado e devidamente afundado no rio. A região é muito bonita e o passeio valeu a pena — até o tempo estava maravilhoso; só que eu, sinceramente, não necessariamente faria questão de participar desta brincadeira. Segue um exemplo de “afundamento bem-sucedido”; primeiro o carro testando seus limites, até aí parece divertido; depois aparece o carro atolado e afundado. Depois se vê a água escorrendo e, finalmente, a expulsão da água do escapamento”:
Estas são somente algumas amostras de um álbum que pode ser acessado através deste link .
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Então vamos desejar feliz aniversário à “Coisa” cinquentona. Eu sempre achei este carro bacana e para acampamentos ele deve ser uma farra. Pena que ele acabou não sendo nem fabricado, nem comercializado no Brasil. Seria uma versão interessante de cabriolé meio-carro, meio-jipe, tudo junto e muito bem misturado.
Foi o Marco Hammerand que me lembrou desta comemoração, o que levou à esta matéria. Mas acho que alguns de vocês devem lembrar dele, pois foi com ele que eu desenvolvi a épica e interessante matéria: “A grande festa dos 60 anos do Fusca” – Parte 1 e Parte 2 .
Eu cheguei à nota do The New York Times, publicada acima, depois de contatos com o amigo de longa data, o jornalista Jason Vogel. Ele tinha me enviado algumas joias históricas garimpadas no arquivo do jornal O Globo, onde trabalha, e uma delas me causou espécie e eu decidi procurar o original; certamente o tradutor não estava lá muito inspirado naquele dia, confira você mesmo:
O elo de pesquisa para chegar à nota do NY Times foi o nome do Brig. Gen Stewart E. Reimel que aparece na nota do O Globo.
Um pouco de confusão até que faz parte, mas não deixa de irritar. O título é falso, pois o Fusca já estava sendo fabricado desde 1938 (é certo que iniciou de maneira incipiente), já no corpo se fala em “reiniciar” a produção, quando, na verdade, apesar do fragor da guerra, os abnegados funcionários da fábrica não pararam de produzir veículos nem por um dia. O restante da nota foi um copydesk lascado da nota do NY Times, que os leitores da época não tinham como contestar.
É interessante observar que o jornal O Globo, já em 1945, tinha um equipamento bastante avançado, como um equipamento de telefoto. As notícias eram enviadas em inglês pelas agências de notícia por telégrafo e eram traduzidas na redação.
Para encerrar, assim como eu tinha feito na matéria VW Tipo 147, o Fridolin , na qual eu apresentei um exemplo em estilo moderno, ai vai uma “Coisa” tunada. Pensaram que não existia?
AG
Agradeço ao Marco Hammerand pela lembrança do aniversário de 50 anos da “Coisa”, este veículo icônico que bem que poderia ter vindo para o Brasil…
Falei que o Marco tem uma loja especializada em peças de veículos VW antigos, tanto nacionais, como alemães, que fica em Pomerode, SC. E o contato dele é via Facebook: https://www.facebook.com/vwantigo.fuscapecas/ ou pelo telefone (47) 3394-2133.
Também agradeço ao amigo Jason Vogel, que acabou propiciando mais um aspecto da história do “A Coisa”. O restante do material que ele enviou poderá virar outra matéria…
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