Tudo começou quando dois mecânicos amigos, Luiz Antônio Gomi e José Carlos Biston, de tanto pelejarem com a Harley-Davidson do Gomi, que costumava dar muitos problemas, decidiram resolver a questão, mas de uma maneira bem complicada.
Acabaram montando uma moto com a parte superior do quadro usando uma mistura de componentes de motos Harley e Indian, enquanto a parte inferior era feita sob medida para acomodar um motor boxer VW 1.493 cm³ de Fusca e o câmbio manual de quatro marchas vindos de um VW Brasília. Toda a parte inferior, que foi construída de forma artesanal, recebeu homologação do Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP.
A moto resultante fazia parte de um seleto e muito pequeno grupo de motos com marcha à ré, dividindo espaço, por exemplo. com as antigas Indian e mais recentemente a BMW K1600 GTL / Bagger 2019, dentre outras. No caso da Motovolks, primeiro nome desta enorme moto construída pelo Gomi e pelo Biston, a marcha à ré era acionada por uma alavanca instalada no lado direito da moto, e esta marcha só engatava quando as outras estivessem desengatadas, e para uma segurança adicional havia no painel a indicação de uma luz-piloto vermelha que acendia quando a ré estava engatada.
O câmbio, que originalmente era de VW Brasília, foi trocado pela caixa do VW Gol. A embreagem era monodisco e o comando de câmbio era por cabo, tendo sido desenvolvido exclusivamente para ser utilizado no lado esquerdo desta moto.
A suspensão traseira tinha um par de molas auxiliares paralelas às originais. Na frente, foram instalados dois amortecedores de direção do Fusca próximos aos garfos telescópicos dianteiros.
Para o freio a moto tinha dois discos de Ford Corcel na dianteira e apenas um atrás. As pinças vinham do VW Variant e o cilindro-mestre era do VW Fusca.
Nas fotos acima o intrépido piloto a testar a Motovolks é o amigo Josias Silveira, de extenso e importante currículo ligado a veículos diversos — personalidade importante na imprensa especializada (ele era o publisher da revista Duas Rodas), e hoje colega aqui no AE. Ao me confirmar que era ele mesmo a pilotar esta máquina, ele disse que “esta encrenca daria um livro”, e há muito a relatar no caso destas motos nacionais com motorização Volkswagen — verdadeiro tempo de pioneiros!
Mas o Josias não parou por aí, ele complementou: “Fui o único jornalista a pilotar esta encrenca. Ninguém conseguia engatar as marchas. Era na mão e tinha duas alavancas, uma delas para fazer a divisão no trambulador entre 1 e 2 e depois 3 e 4. Divertido, apesar de pesar uns 400 kg”. Esta intrépida pilotagem foi feita antes do sistema de engate de marchas por pedal tivesse ficado pronto… O Josias fez parte desta história toda!
O motor recebeu algumas modificações. O dínamo foi rebaixado, a lataria do motor, por causa da ventoinha, foi reduzida em suas dimensões, o virabrequim, bielas e volante foram balanceados, com o volante do motor sendo aliviado para diminuir o efeito giroscópico (tendência da moto inclinar-se no sentido contrário à rotação do motor nas acelerações, como nas BMW. Este fenômeno ocorre em motos de virabrequim girando no sentido longitudinal).
O acionamento final era por corrente, com uma grande roda dentada ocupando o lugar usualmente ocupado pelo semieixo de um Fusca. O diferencial, já que não era necessário, era bloqueado por solda.
Uma tremenda colcha de retalhos: o farol retangular vinha do caminhão Mercedes-Benz 608 D; o painel de instrumentos incluía velocímetro e conta-giros vindos do Puma, e assim por diante. Depois, com a evolução dos modelos, tudo isto foi mudando.
A virada inesperada
Comenta-se que a dupla Gomide e Bison montou quatro Motovolks, cujo paradeiro é desconhecido. Mas a história, que poderia ter terminado por aí, acabou dando uma guinada, quando o empresário paulista Daniel Ferreira Rodrigues, proprietário do Grupo Ferreira Rodrigues, acabou sabendo da existência do projeto Motovolks.
Com seu apurado senso comercial, Daniel, sabedor da situação do parque de motos das Forças Armadas e das polícias, que eram equipadas com obsoletas motos Harley-Davidson — cuja manutenção sofria com o mercado fechado para importações; uniu as pontas e vislumbrou a possibilidade de atender àquela lacuna de mercado com motos grandes, fortes, confiáveis e o melhor de tudo: fabricadas no Brasil.
Com a aquisição do projeto foi estabelecida uma nova empresa: a Amazonas Motocicletas Especiais Ltda., ou simplesmente AME; no dia 15 de agosto de 1978, no bairro da Penha, em São Paulo.
O nome Amazonas remetia à grandeza da floresta amazônica que se espelhava naquela moto gigantesca, a maior moto do mundo!
No lançamento comercial a moto, já batizada de Amazonas, era disponível em três versões, nas quais se destacavam a versão Militar, Luxo e uma versão voltada para uso policial que pesava 380 kg.
Uma inovação para a época foi a alternativa com motor a álcool. A moto Amazonas tinha 2,32 metros de comprimento e distância entre eixos de 1,67 metro. O motor, originalmente 1.493 cm³, foi trocado por um de 1.584 cm³ com 56 cv.
Segundo informações da revista Moto, apesar do porte avantajado, a moto era relativamente ágil, precisando de 8,7 segundos a 10,3 segundos para acelerar de 0 a 100 km/h. O peso líquido do modelo Turismo era de 384 kg e dos modelos Esporte e Super Esporte era de 374 kg.
Teste de Expedito Marazzi
O saudoso amigo Expedito Marazzi fez vários testes com a moto Amazonas, em diferentes épocas.
Para dar um exemplo destes testes eu coloquei um deles no sistema ISSUU (que simula uma revista pela internet), este material foi enviado pelo filho do Expedito, o Gabriel Marazzi, que, por sua vez, também fez vários testes da Amazonas. Para abrir o teste do Expedito clique AQUI.
“Julliet”, o sidecar da Amazonas – teste de Gabriel Marazzi
Não demorou muito para a Amazonas se tornar notícia pelo mundo. Apesar de sua produção pequena, esta motocicleta acabou sendo exportada para vários países, como Japão, França, Suíça, Alemanha e Estados Unidos.
A ideia de fabricar um sidecar, veio da experiência que a Amazonas Motocicletas Especiais Ltda. vinha adquirindo no mercado internacional, na época, onde a sua moto, a Amazonas 1600, foi considerada estradeira e ideal para o uso com este equipamento.
Neste caso temos uma reportagem, também convertida para o sistema ISUU, desta feita com um teste feito pelo Gabriel Marazzi, com texto de Pio Pinheiro, que pode ser acessada AQUI.
Abaixo o Gabriel Marazzi relaxando durante uma seção de testes com motos Amazonas:
O mercado americano não é para amadores
A luta para competir no mercado internacional não foi lá muito favorável para a moto Amazonas, tanto que em novembro de 1985 ela acabou recebendo comentários desabonadores por parte de uma publicação americana, a prestigiosa Cycle World, que classificou o acabamento de amador e o projeto de primitivo.
Mas, mesmo assim, há exemplares preservados no estrangeiro também. Também neste caso eu coloquei esta reportagem no ISUU para que se possa ter acesso ao teste feito (em inglês); para acessar esta reportagem clique AQUI.
Outras publicações foram até mais duras com a Amazonas 1600, o que certamente acabou atrapalhando os planos de exportação da AME.
Falando dos planos da AME para exportação para os EUA, eles não incluíam passar a moto pelos complexos e caros testes de homologação de cumprimento das leis antipoluição americanas. A solução seria vender a moto sem o motor. E para facilitar a vida dos compradores as motos seriam vendidas em kits de três fases. A fase 1 seria o quadro e a suspensão. A fase 2 seria a carenagem de fibra de vidro, com os instrumentos e vários outros detalhes mecânicos. A fase 3 seriam as peças de acabamento.
O ocaso
Em 1985 a AME mudou de mãos, adquirida por Guilherme Hannud Filho, mas sua história não iria durar muito tempo mais.
Como um fruto dos tempos de restrição à importação, que forçavam a venda do que aparecia no mercado, a virada da gangorra do mercado foi fatal para a moto Amazonas, logo que surgiram os primeiros sinais de flexibilização das importações. Resultado: a fabricação foi encerrada, apesar do bom nome que esta moto tinha alcançado no Brasil. O encerramento da fabricação ocorreu em outubro de 1988 (com um total próximo a 450 unidades, das quais mais de 100 destinadas a polícias e escoltas), sendo que cinco ou seis motos ainda foram montadas no ano seguinte, marcando assim, o fim do MOTOSSAURO (apelido que a própria fábrica usava).
Um “ninho” de motos Amazonas
Para quem gostaria de ver uma seleção de motos Amazonas em excelente estado eu aconselho uma visita ao Box 54 (endereço nas notas abaixo). Lá se pode ver a primeira moto Amazonas do Exército, uma moto com sidecar Julliette e várias outras.
Seguem mais algumas fotos destas motos Amazonas da coleção do Box 54 (Fotos do autor)]:
Uma nova tentativa que não chegou a virar realidade
Os dois mecânicos que conhecemos no início desta matéria, o Luiz Antônio Gomi e o José Carlos Biston, não se deram por vencidos, e acabaram por criar outras duas motos; trabalhando em conjunto com outras pessoas. Foram as motos Brasil e Kahena.
A nova moto Brasil 1600 — que também utilizava o motor VW boxer arrefecido a ar, que de acordo com notícias da época “deveria entrar em breve em produção” tinha várias evoluções, dentre ela a substituição da transmissão secundária por corrente por cardã. Seguem fotos de uma Kahena (Fonte pesquisa na Internet):
Luiz Antonio Gomi acabou se desligando do grupo AME e associou-se a Jacinto Del Vecchio, e, juntos, fundam a Técnica Paulista de Motos e Acessórios Fora de Estrada Ltda (TEPAMA). Com esta associação nasceu a moto Brasil 1600. Segundo Luiz Antônio Gomi: “A nossa ideia foi fazer uma moto diferente do que já tinha sido apresentado até agora, uma moto mais moderna. Os modelos anteriores com mecânica VW eram duros e tinham problemas com excesso de peso. Na moto Brasil diminuímos esse peso, fizemos um quadro elástico com uma balança traseira e criamos um sistema de freios mais racional; além disso, reduzimos suas dimensões para que pessoas com menor porte físico pudessem dirigi-la”.
Para financiar o projeto, tanto Luiz Antônio como Jacinto tiveram que se desfazer de vários bens pessoais, e, com isso, puderam fazer o protótipo, contratando o serviço de terceiros apenas para as peças fundidas e os trabalhos de fresagem.
Na parte superior deste folheto se lia: Robustez, simplicidade e confiabilidade mecânica, baixo consumo de combustível, quadro estampado em aço – TECBOX, suspensão monochoque regulável – UNI-ARM e transmissão secundária por cardã, são algumas das principais características da KAHENA LJ-16, uma motocicleta 100% nacional.
Conforme relatos colhidos na época, terminada esta fase do projeto, eles começaram a fazer contatos com empresários e esperavam, caso conseguissem fechar um acordo, que a moto Brasil entrasse em produção, com os modelos prontos, dentro de quatro meses.
Um observador da época relatou: “Ela (a moto Brasil) era uma moto muito bonita, grandalhona e inovadora, porque tinha transmissão por cardã, suspensão telescópica Ceriani (nome da empresa italiana que primeiro produziu este tipo de suspensão para motos) e outros detalhes bem peculiares do modelo; era uma novidade mas não saiu do projeto, porque ela acabou tornando-se a moto Kahena”.
A empresa TEPAMA, virou TECPAMA—Técnica Paulista de Máquinas, e a moto Brasil tornou-se Kahena, motocicleta bonita, arrojada e inovadora, que foi uma tentativa de competir com as importadas da época, tendo como principal ponto favorável a velha e boa mecânica VW a ar.
Hoje, a Kahena ainda tem uma legião de admiradores, pessoas que a cultuam como um ícone da indústria nacional, como sua irmã mais velha, a moto Amazonas!
O peso, 320 kg, e as dimensões avantajada assustavam quando alguém se confrontava com uma Kahena, mas ao pilotá-la as coisas iam ficando mais sob controle.
O seu motor partia de um motor de Fusca que foi parcialmente modificado para receber um câmbio novo e um volante menor. Com um centro de gravidade baixo em relação ao centro de gravidade de uma moto comum, ficava fácil equilibrar a moto em velocidades baixas. A marcha à ré ajudava muito não só para estacionar a moto, como também em situações difíceis, como tirar a moto de algum obstáculo que ela tivesse entrado. Um dos medos iniciais de quem não conhecia esta moto era o caso de a moto cair: se a moto caísse parada ela não chegava a tombar completamente ficando apoiada no protetor do motor, bastava um empurrão para que ela voltasse à posição vertical. Para se ter uma noção de sua velocidade final, a versão de 90 cv chegava próximo dos 190 km/h.
A moto Kahena foi produzida em três modelos: 1) SS 1600 2) ST 1600 3) KAHENA CUSTOM 1600.
Diferentemente do que ocorre com a Amazonas, o número de exemplares fabricados da Kahena é desconhecido.
Terminando este relato sobre as motos Amazonas e Kahena, vamos, na Parte 2, ver duas motos únicas, uma BMW e uma Harley-Davidson, com motor de Fusca; exemplos únicos resultado da engenhosidade de mecânicos especiais.
AG
Para a elaboração desta matéria eu contei com a ajuda do Gabriel Marazzi que me enviou as publicações de teste de seu pai, o Expedito, e dele; as quais eu aproveitei nesta publicação. Meu agradecimento ao Gabriel.
A colocação de material de revistas aqui na coluna é bastante difícil, dado o tamanho pequeno das letras das revistas. Desta vez eu experimentei o recurso do ISSUU, que permite ampliação quando aberto num celular e dá um tamanho razoável de letra quando lido num computador em modo tela inteira. Mesmo assim, se alguém precisar de uma versão em PDF é só falar – meu e-mail está aí abaixo.
Já o material da Cycle World foi obtido por pesquisa na internet, decorrente de um material que o amigo Rainer Zerrath, da cidade alemã de Würzburg havia enviado: uma reportagem em inglês sobre o assunto. Também agradeço a ele.
Este é um assunto antigo, e para recompor a história foi necessária uma longa pesquisa, destaco os sites odd-bike.com, mot.com.br, motobr.wordpress.com.br, jornaldocarro.estadao.com.br/motos, tudodeumpoucomotos, motosclassicas70.com.br, wikipedia, e revistas Motor 3 e Duas Rodas. Muitas fotos baixadas da internet já não tinham mais créditos de seus autores — fica valendo o disclaimer abaixo.
Endereço do Box 54 – Rodovia Gregório Spina, 341 – Distrito Industrial, Araçariguama – SP, 18147-000 — Fone (11) 4204-1280 um belo local para quem gosta de veículos antigos. Maiores dados pelo site: https://www.box54.com.br/
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