Este é mais um resultado do convite que faço para que meus leitores e leitoras enviem seus causos. Desta vez foi o Yuri Leite, que enviou a seguinte mensagem:
“Boa tarde, Alexander, meu nome é Yuri e relatarei abaixo uma das várias histórias do Júnior, um amigo meu. Vez ou outra flerto com a ideia de redigir um livro com todos os causos compilados e sequenciados, e de título “O Fusquinha do Pai”, uma vez que o Fusca apesar de coadjuvante esteve sempre presente nos causos.”
O FUSQUINHA DO PAI
Por Yuri Leite
Meados de 2007, tínhamos 16 anos. Na cabeça a pressão para o vestibular era constante, cursinhos, provas, intensivos, um dos últimos vestibulares tradicionais.
Entre formaturas do ensino médio e utopias de estudo em universidades federais, estava a tão sonhada Carteira Nacional de Habilitação.
Cidade pequena do interior de Minas Gerais, a lei não permitia, mas o bom senso dos homens da lei fazia vista grossa com os não portadores de CNH que vez em sempre dirigiam pelas ruas de paralelepípedo do grande vilarejo.
Por mais que houvesse vista grossa, nossos pais, com pensamentos semelhantes, jamais autorizavam tal contravenção. A exceção quase que poética ficava nas históricas estradas de chão dos mais interioranos distritos municipais.
O que décadas atrás era uma via de passagens de pedestres e animais, se tornava a Nürburgring1 dos aprendizes da direção, ainda que limitados à terceira marcha e a estratosféricos 40 km/h.
A autorização era concedida na ida ou no retorno dos sítios e ranchos, aos finais de semana. Nunca antes houve tanta vontade de ir pra roça. E aqui entra o “Fusquinha do Pai”. Sim, em iniciais maiúsculas para que não se confunda com meros substantivos comuns, era o nome próprio, quase registrado, do nobre Fusca.
No “Fusquinha do Pai”, pois era assim que o Júnior falava dele para todos, quando lhe era perguntado sobre como ele iria para algum lugar. O pai, o Sr. João, tratava o “Fusquinha do Pai” com esmero e atenção, pois, de início, era o único meio de condução da família. Manutenção em dia evitando surpresas, porém as marcas do cotidiano já eram evidentes no pequeno besouro.
De cor bege, acredito ter sido repintado, pois em uma das oportunidades que andei nele pude notar no canto da porta: um azul calcinha. Deveria ser pós-80, devido ao painel e retrovisores.
As lanternas “Fafá” em fumê e as rodas do Fuscão denotavam certa esportividade ao Besouro, entretanto o “Fusquinha do Pai” já tinha queimado muito óleo.
Circulavam boatos que, apesar de o Sr. João possuir uma boa quantia em banco, ele não abria mão de seu Fusquinha por puro apego. Em 20 anos a máxima concessão que ele fez foi ter um complemento: um Chevrolet Celta para atendimento às viagens mais longas. O Celta compartilhava a mesma garagem do Fusquinha. Um tempo depois descobriu-se que a lenda da quantia era só parcialmente verdade, e que o pobre Fusquinha e o Celtinha seriam substituídos para amenizar cicatrizes da vida.
Voltando ao rancho num final de domingo qualquer, Sr. João grita para o Júnior para irem embora. Faustão na televisão, sol se pondo, ovos coletados, peixe na caixa térmica, galinha viva bem amarrada no “coxinho”, verduras e frutas nas sacolas, rancho limpo, era hora de ir para a cidade.
Mal o pai terminou a frase e Júnior já se pendurou ao volante do Fusquinha. O Sr. João, matuto da roça, com vasta experiência em Fuscas e zona rural, ia lecionando teoricamente cada passada de marcha, acelerada, desvio, controle de embreagem, mata-burros…
Júnior era entusiasmo e nervosismo, ora acertava a marcha, ora o suor frio escorria. O percurso entre o rancho e a cidade era de aproximadamente meia hora, e lá pelas oito e pouco do domingo eles topam com um carro vindo em sentido contrário.
O caboclo do lado de lá, entretanto, não cedeu passagem nem abaixou o farol. Vale uma verdade para quem a desconhece: duas infrações gravíssimas na “lei das estradas rurais”. Quem já é acostumado sabe que há um código de conduta de milorde para quem trafega por estradas rurais. Cláusulas como “Sempre que topar com alguém no sentido contrário, procure ceder o maior espaço para o outro carro”, ou “Sempre ajude o compadre atolado ou com pneu furado” não estão evidenciadas em nenhuma constituição, porém estão enraizadas na condução do matuto da roça.
Algumas dessas regras, aliás, fazem muito mais sentido e dão muito mais resultados que algumas proezas reais do nosso CTB (Código de Trânsito Brasileiro).
Pena que esse código de conduta em estradas rurais esteja se perdendo no tempo, devido, principalmente, à violência e à desconfiança em terceiros que compartilham a mesma via.
Voltando ao caboclo audacioso do domingo à noite, o Sr. João, orgulhoso ordenou a Júnior: “Bota o farol alto” e o menino Júnior prontamente atendeu à ordem do pai. Ora lá, quem é esse camarada que está nos desafiando? — pensava.
O que eles não esperavam é que o tal camarada estivesse fortemente munido de faróis auxiliares, de longo alcance e de neblina. Uma metralhadora de lúmens se abateu sobre o “Fusquinha do Pai”, cujos passageiros, apesar dos olhos esbugalhados, tiveram as pupilas humildemente se contraindo e suplicando por um fechar das pálpebras. Uma centena de holofotes de infinitos watts, no meio da escuridão da roça.
“POXA QUE PARTIU”, exclamou o Sr. João, “ENCOSTA PRA DIREITA, ENCOSTA”, esbravejava enquanto cobria os olhos. E Júnior, sentindo-se o Mr. Magoo2, atendeu como sempre às diretrizes do pai e encostou o Fusquinha.
Passa o tal carro, uma S10 talvez, ou uma F-1000, a cegueira temporária não permitia definir que caminhonete era, isso é se fosse uma. Aguardaram alguns segundos, visão quase normal, engata-se a primeira e toma-se rumo para a cidade num silêncio quebrado apenas pela galinha balançando no coxinho, e pelo delicioso zumbido do cansado motor boxer.
Agora sobre a foto de abertura: depois de muito procurar, achei uma foto do “Fusquinha do Pai”. Eu no carona, Sr. João no banco traseiro. Em pé de boné o Júnior, atrás dele um tio nosso. Em um domingo, na roça, saindo para irmos embora para a cidade.
Por um acaso do destino, o câncer veio a levar o Júnior, meu melhor amigo, e o Fusquinha foi trocado por uma Fiat Strada. Infelizmente não tenho mais registros dele. Porém nem a mais brava das doenças pode levar memórias registradas no papel.
E o Yuri?
O Yuri Leite tem 28 anos, é da cidade de Iguatama, MG, trabalha como engenheiro de obras e é entusiasta automobilístico desde pequeno.
(1) – Nürburgring – célebre pista de corridas alemã, situada na região chamada Eifel.
(2) – Mr. Magoo – personagem de desenho animado com um altíssimo grau de miopia, que era praticamente cego. As histórias exploravam esta deficiência visual de maneira jocosa.
AG
Fica aqui o agradecimento ao Yuri Leite pela iniciativa de enviar o seu causo, envio o meu apoio para que ele logo concretize seu plano de escrever um livro de causos.
Reitero o convite para meus leitores e leitoras para que submetam seus causos com Fuscas, Kombis e demais veículos arrefecidos a ar, quem sabe eles sejam publicados.
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