Em muitos casos, depois de uma matéria vem outra aproveitando o gancho da primeira, mas neste caso foi pura coincidência. Há alguns anos eu conheci Lauro Filippetti por e-mail em relação à famosa foto da Kombi-Escola, no qual ele informava o nome correto da pessoa que está no lado esquerdo da foto acima — Celestino Gutierrez, seu sogro. Muitos devem conhecer o Lauro da Matéria “VEMP x JEG” na qual o seu lindo JEG aparece.
Naquela ocasião, Lauro ficou de preparar umas fotos que o seu sogro tinha para aproveitamento numa eventual matéria, e este momento chegou. Celestino Guttierrez já é falecido o que dificultou o levantamento da história, mas em conjunto com sua esposa e seu cunhado, filhos do Sr. Celestino, muito pôde ser recuperado
As fotos originais estão coladas num antigo álbum e algumas foram fotografadas e enviadas para mim por WhatsApp. Seguiu-se o retrabalho deste material de maneira a torná-lo o mais apresentável possível. Muitas das fotos já apresentam danos de idade, mas antes tê-las aqui do que continuando num álbum dentro do armário.
São documentos históricos únicos que nos levam a um tempo de pioneiros, quando a Brasmotor dava o suporte de ensinamento da mecânica Volkswagen, e de solução de problemas de oficina pelo Brasil (coisas que o pessoal sozinho não conseguia resolver e precisava de ajuda). E para tanto lá ia o Sr. Celestino e um colega a bordo da Kombi que aparece na foto de abertura (o nome do colega do Sr. Celestino se perdeu no tempo). A foto da imagem destacada foi processada para dar ênfase ao Sr. Celestino que é o herói desta matéria, a mesma foto aparece sem processamento na matéria “SABRICO X BRASMOTOR – QUEM FOI QUEM?”, da qual esta é como se fosse sua continuação.
Biografia do Sr. Celestino
Nasceu em 28 de outubro de 1926 em São Caetano do Sul, SP. Filho de Afrodisio Januário Gutierrez e Mathea Saez Gutierrez, imigrantes espanhóis que vieram para o Brasil inicialmente para trabalhar na lavoura de café. Estudou Desenho Mecânico e Projeto de Máquinas na Escola Técnica Getúlio Vargas. Importou livros de Transmissão Automática, Motores Automobilísticos, Sistemas de Direção, Freios, Carroceria e Circuitos Elétricos. Aprendeu inglês lendo e traduzindo parte desses livros.
Em seu primeiro emprego trabalhou na Fábrica de Laminação de Metais em São Caetano do Sul, onde perdeu a ponta de um dedo polegar numa prensa. Tinha um sexto sentido aguçado para solucionar problemas, descobrindo sua causa raiz de maneira racional e intuitiva ao mesmo tempo.
Trabalhou na Brasmotor¨e recebeu as primeiras importações de Fusca, Kombi, Dodge e Chrysler. Nessa época cuidava de uma equipe de mecânicos que preparava os veículos para entrega nas concessionárias. Por exemplo, os primeiros Fuscas vinham sem pneus com uma “esteirinha de madeira” (lagarta) e ao desembarcar dos navios rodando sobre essas “lagartas”, em seguida essa equipe desmontava esse “equipamento” e montava os conjuntos de rodas e pneus para que os veículos pudessem subir a Serra do Mar para chegarem ao galpão da Brasmotor em São Bernardo do Campo.
Certa ocasião, ainda na Brasmotor, pegou uma caminhonete e foi ao Aeroporto de Congonhas tomar um avião para o Rio de Janeiro. Chegando no balcão de embarque com a passagem na mão teve um pressentimento e decidiu que iria para o Rio de carro. Pegou a caminhonete e chegou no Rio por volta das sete horas da noite, jantou e dormiu. Quando ligou para o escritório para falar com seu chefe, Miguel Etchenique, ficou sabendo que todos já choravam a sua morte, pois aquele avião caíra matando todos os passageiros. Todos ficaram surpresos e felizes. Depois foi ser Chefe de Oficina numa concessionária em Curitiba.
Daí trabalhou na Simca do Brasil e como chefe de oficina desenvolveu o motor do Simca 3 Andorinhas. Desse motor a Simca lançou o Simca Tufão.
Saiu e montou a sua própria concessionária Simca, a Samaco, em conjunto com dois sócios, um deles o Sr. Amilcar Alevo, pai do Amilcar Alevo sócio-proprietário da Rede TV. Tinha como clientes alguns artistas famosos na época como o humorista Costinha, a cantora Inezita Barroso, o apresentador Raul Gil, Hebe Camargo, dentre outros.
Ele quebrou com a revolução de 1964 e se desfez do negócio, pois não se vendia mais nada… E foi montar sua própria oficina em São Bernardo do Campo.
Em meados de 1971 foi convidado para trabalhar na Chrysler. Seu filho Reinaldo Gutierrez conta por que ele deixou a fabricante americana. Depois disso o Sr. Celestino voltou para a oficina onde ficou até se aposentar. Faleceu em 11 de maio de 2000, aos 73 anos, e deixou esposa e três filhos.
A razão da saída do Sr. Celestino da Chrysler, contada por seu filho
“Em uma oportunidade apareceu a necessidades de trocar os cubos das rodas traseiras dos caminhões já produzidos e estocados no pátio enlameado da Chrysler. Ninguém tinha a solução para fazer o serviço nos mais de 600 caminhões do pátio. A gerência foi forçada a pedir ajuda e consultar meu pai, que era um “feitor” de produção, mas muito considerado. Meu pai disse que faria o serviço em um fim de semana caso a empresa desse 10 garrafas de oxigênio, 10 operadores e 10 conjuntos de aparafusadeiras pneumáticas. Alguns engenheiros e alguns gerentes disseram que ele era louco e que iria explodir tudo, pois devia saber que não se pode misturar oxigênio com óleo. Bom, ele foi lá, desafiou os entendidos e disse que se explodisse qualquer coisa a responsabilidade seria dele. E disse: “Isto se é que vocês querem que o serviço seja realizado”. Apostaram contra ele e perderam. Ficaram enciumados e o mandaram embora depois do sucesso total da troca de cubos de roda sem um incidente sequer!.
Acho interessante ressaltar que a Brasmotor se ocupou com veículos Volkswagen entre setembro de 1950 e junho de 1953, quando o contrato com a Volkswagenwerk GmbH terminou, e durante este tempo o Sr. Celestino esteve prestando serviços à esta empresa, quando trabalhou com a Komb- Escola Técnica de Autos. E certamente nesta função era necessário ter conhecimentos de mecânica e um bom jogo de cintura.”
Resgatando as fotos
A Brasmotor era muito organizada e tudo era registrado em boletins de serviço:
As fotos que seguem são do início da Brasmotor, do galpão destinado à montagem da assistência técnica dos veículos antes dos Volkswagen. A experiência com este trabalho ajudou o estabelecimento da assistência para a linha Volkswagen:
Já na era Volkswagen da Brasmotor, vê-se a Kombi-Escola Técnica de Autos devidamente caracterizada e estacionada na área de treinamento de mecânicos:
Na foto abaixo, o diretor administrativo da Brasmotor, Inocêncio M. G. Calmón, de terno escuro, dirige algumas palavras aos presentes; e à esquerda na foto, de terno claro e óculos escuros, está o Sr. Celestino:
Na foto abaixo, de 20/03/1950, está o Sr. Celestino numa prancheta, pois sua formação em desenho mecânico foi de grande ajuda no desenvolvimento de ferramentas
Na Brasmotor também eram realizados treinamentos para a linha Chrysler:
Enquanto isso os veículos vinham chegando, como esta Kombi. Elas vinham montadas somente, não houve montagem de Kombis a partir de CKD’s na Brasmotor.
O certificado de participação de um Curso de Atendimento ao Cliente realizado pela Volkswagen em São Paulo (v. abaixo) pode parecer enigmático, já que o tal curso teria sido feito de 11 a 14 de agosto de1953, quando o contrato da Brasmotor com a Volkswagen já havia-se encerrado, mas há uma explicação para isto. Este diploma foi um presente que o Sr. Celestino recebeu em razão de seu relacionamento com pessoas da Volkswagen e do seu trabalho junto à assistência técnica interna da fábrica, e que contou com os seus amplos conhecimentos para melhoria do produto graças à sua vasta experiência obtida nas visitas pelo Brasil, somada a seu relacionamento com líderes da Volkswagen, engenheiros, mecânicos internos, etc.
Conversando com o Lauro Filippetti sobre este caso, ele comentou: “Lembro que o Sr. Celestino mencionava nomes, inclusive alemães, mas hoje não lembro ao certo quem eram. Relatou que em muito o ajudaram e o queriam à frente do departamento técnico, mas ele não continuou na linha Volkswagen devido a propostas de trabalho que tinha recebido na época.”
A Kombi-Escola era repleta de equipamentos, entre diversas ferramentas e conjuntos como o a suspensão dianteira e um motor completo:
Numa viagem tudo podia ocorrer, até uma pane na Kombi, que tinha que ser consertada pelos instrutores; aqui um dano no dínamo que teve que ser consertado em plena estrada:
Uma parada para abastecimento no interior da Bahia mostra a precariedade das instalações de época, lembrando que era o início da década de cinquenta:
Em estradas com lama, comuns na época, a Kombi tinha que passar. O Sr. Celestino afirmava que nunca atolou, mas em uma oportunidade a Kombi derrapou e ficou apoiada num barranco, mas conseguiu sair daquela situação:
As Kombis percorriam o Brasil tanto para para certificar novos mecânicos quanto resolver problemas apresentados pelos Volkswagen.
Em muitos países os Volkswagens começaram a ser conhecidos e ter a sua qualidade reconhecida através da participação em competições. Seguindo esta filosofia os tripulantes da Kombi organizaram uma “competição” num percurso de 60 quilômetros entre Mato Grosso e Goiás:
Outro testemunho da carreira do Sr. Celestino são os cartões de visita dele na Brasmotor como se pode ver na foto abaixo:
Aqui encerramos esta matéria que foi possível graças à colaboração de Lauro Filippetti — a quem muito agradeço. Com isto foi possível resgatar uma história única, que até esta matéria não era conhecida. Lauro ressaltou a participação de sua esposa, Ana Lúcia Gutierrez, que colaborou no levantamento histórico baseado em suas lembranças com seu pai.
A foto da Kombi-Escola é muito conhecida, mas as demais fotos estão fazendo a sua estreia agora e mostram como a Brasmotor foi importante na preparação do caminho para o sucesso dos veículos Volkswagen no Brasil através do estabelecimento das primeiras oficinas com treinamento dado pela própria Brasmotor seguindo fielmente o padrão da fábrica.
Com esta matéria fazemos também uma homenagem póstuma ao Sr. Celestino Gutierrez que chegou até a contribuir no melhoramento do produto Volkswagen Sedan daquela época. Ele foi um personagem significativo da Saga do Volkswagen no Brasil desde o seu início.
Em tempo, uma informação adicional: na revista comemorativa dos 50 anos da Brasmotor, edição de 25 de julho de 1995, a Kombi-Escola aparece na capa e em seu conteúdo também se fala da época automobilística da empresa dentro do contexto de uma empresa que já surgiu com duas linhas de produtos: a linha automobilística e a dos eletrodomésticos. Coloquei esta revista no sistema ISSUU que permite a leitura folheando as páginas como se fosse uma revista mesmo, tendo até a função zoom que permite a leitura daquelas “letrinhas pequenas”. Recomendo a leitura da primeira contracapa interna com o editorial “A Visão Sempre Esteve Presente” e o texto de Mauro Salles “Passado e Futuro”; mas a revista toda está à sua disposição neste LINK
Como foram as Kombi-Escola nos EUA?
Do livro “The Beatle” de Arthur Railton transcrevo o trecho que conta como foi o aculturamento das oficinas para a desconhecida técnica Volkswagen:
Conforme as vendas aumentaram, também aumentou a demanda por mecânicos treinados, e percebendo o quão importante Nordhoff considerava a assistência técnica ser, Will van de Kamp, o chefe de Vendas da Volkswagen para a Costa Leste, em seu escritório em Nova York, pediu ajuda a Wolfsburg.
Fritz Fricke foi um dos vários técnicos que correram para ajudar. “Cheguei em 19 de maio de 1955, no aeroporto de Idlewild. Ninguém estava lá para me buscar e eu tinha apenas 20 dólares no bolso. Telefonei para Perkins e ele disse, ‘Oh, você já está aqui?’ Quando lhe pedi que alguém me buscasse, ele disse: “Só temos um carro e ele está em algum lugar fora da cidade.” Então peguei o ônibus para o terminal aéreo e Stuart Perkins, assistente de van de Kamp, me pegou lá. Ele não conseguiu me adiantar qualquer dinheiro da empresa porque ele não podia assinar cheques, então ele me emprestou 50 dólares de seu próprio bolso até que van de Kamp voltasse de uma viagem a trabalho pela região.
“Ele me designou um território de Washington, DC até Miami e depois até Nova Orleans, e parti imediatamente em uma VW Kombi Furgão, que tinha uma velocidade máxima de 80 quilômetros por hora, repleta de ferramentas, peças e minha única mala.”
Vários outros homens de campo chegaram em poucos dias e, como Fricke, começaram a espalhar o evangelho VW, ensinando aos revendedores com um inglês tosco, e às vezes mal-humorado, como consertar esse automóvel totalmente diferente. Este punhado foi apenas um pelotão avançado de ataque.
No início de 1956, 26 engenheiros de serviço, recém-chegados de uma breve imersão de inglês, chegaram a Nova York a bordo do S.S. Bremen, cada um com sua VW Kombi Furgão carregada com ferramentas e peças e cada um com energia, entusiasmo e dedicação mais que suficientes para “conquistar” uma grande nação. Esta “invasão” de alemães munidos de manuais técnicos e muita determinação criaram a reputação da VW em assistência técnica que seria de grande utilidade para a empresa anos depois.
AG
A foto de abertura é uma foto composição do autor e a foto de origem é do seu acervo. A revista Brastemp 50 Anos e as demais fotos da matéria foram enviadas pelo Lauro Filippetti, e são do acervo de sua família.
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(Nota de acréscimo: no dia 09/10/2020, às 20h30 foi acrescentado o boxe: Como foram as Kombi-Escola nos EUA?)
A coluna “Falando de Fusca & Afins” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.