Estes dias eu recebi um e-mail de Rubens Florentino Junior e ele me enviou um causo que fala de ‘VW Fuscas’ de competição no Brasil e também fala de sua família envolvida em competições. Vamos ao causo:
O ‘VW Fusca’ e como nós o pilotamos em competições
Por Rubens Florentino Junior
O ano é 1985 e o Brasil vive um momento terrível, a má gestão da economia por parte do governo trouxe uma inflação inimaginável, algo em torno de 235% ao ano.
Apesar das dificuldades econômicas, o automobilismo seguia relativamente bem e com apoio das fabricantes, caso da categoria Opala Stock Car, criada em 1979, sob os auspícios da General Motors do Brasil. A categoria existe até hoje e é a principal categoria do automobilismo brasileiro. Em 1984 foi instituído o Campeonato Brasileiro de Marcas e Pilotos, um retumbante sucesso até o inicio dos anos 1990, com o envolvimento das fábricas.
A ideia não poderia ser mais simples: vamos trazer o ‘VW Fusca’ de volta às pistas, afinal, em meados dos anos 1980 eles ainda eram fartos, acessíveis e as peças podiam ser encontradas em qualquer lugar. O ‘VW Fusca’ ainda estava em produção (seu último ano seria 1986 — com uma inesperada volta entre 1993 e 1996) e a Volkswagen do Brasil acabou mantendo o fiel motor boxer de quatro cilindros em produção por quase duas décadas, impulsionando a VW Kombi até o motor arrefecido a ar sair de produção em 23/12/2005.
A última vez que o ‘VW Fusca’ havia corrido oficialmente tinha sido na década de 1970, na Divisão 3, uma categoria reservada para carros de produção altamente modificados, em duas classes de cilindrada, até 1,600 cm³ e acima. Nela as equipes tinham a liberdade de extrair até a última gota de potência dos motores arrefecidos a ar e transformar o ‘VW Fusca’ com kits de carroceria de plástico reforçado com fibra de vidro, rodas extralargas com pneus slick e câmbio Hewland de cinco marchas. Esses monstrinhos eram adorados pelos fãs. Devido às crises do petróleo de 1973 e 1979, a Divisão 3 teve uma vida muito curta e 1980 teve sua última temporada.
Esses carros não eram baratos de modificar, e um desses Fuscas bem equilibrado nas mãos de um piloto experiente incomodaria Chevrolet Opalas e Ford Mavericks de Divisão-3, com seus motores maiores e naturalmente bem mais potentes.
Nova categoria
Uma nova categoria foi criada de maneira ser exatamente o oposto da Divisão 3, ser acessível. Para isso os carros deveriam ser o mais próximo possível de um Fusca normal de produção. Assim, em 1985 nasceu a categoria Speed 1600, com um regulamento bem limitado.
Entre outros pontos, o regulamento estabelecia:
* Os carros deviam manter todos os painéis de aço originais e não eram permitidos cortes na carroceria, exceto o da saia traseira para dar lugar ao escapamento e o outro da frente para dar lugar a um radiador de óleo adicional.
* Apenas os vidros das janelas laterais podiam ser substituídas por acrílico.
* As rodas deviam ter 14″ de diâmetro e não mais que 6″ de tala. Rodas de liga do mercado de reposição eram permitidas. Pneus, apenas radiais de uso na rua, com seção transversal máxima de 195 mm e perfil não inferior a 60.
* Suspensão dianteira: de série com travamento para rebaixá-la. Suspensão traseira: de série com ajustes de câmber livres. Os amortecedores também deviam ser originais de fábrica
* Motor: 1600 a álcool de série, Apenas um pouco de “usinagem” nos cabeçotes era permitido. Dupla carburação Solex original com um pouco de polimento interno. Livre escolha de difusores. Escolha livre de escapamento, taxa de compressão livre.
* Transmissão: original de fábrica com livre escolha de engrenagens usadas na linha.
* Freios: discos dianteiros de série e tambores traseiros.
Pelo que me lembro, era isso.
A categoria Speed 1600 começou como um torneio regional em São Paulo e se tornou um sucesso instantâneo. Era mais barato competir com um Fusca do que com um kart.
Esta categoria não só trouxe pilotos e mecânicos veteranos de volta às pistas, mas também abriu as portas para uma nova geração de fanáticos automobilísticos. Juntos, eles fizeram da Speed 1600 a categoria de corridas mais popular de São Paulo, grids de largada com mais de 40 carros eram normais.
Em junho de 1988, a revista Quatro Rodas publicou um artigo de 5 páginas sobre a categoria Speed 1600 e então, o resto do país de repente foi picado pelo “inseto”:
As cidades do sul do Brasil com autódromos funcionais começaram imediatamente a organizar torneios semelhantes. Os regulamentos se basearam no de São Paulo e isto facilitou a realização futura de torneios interestaduais.
Em 1987, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo a categoria Speed 1600 bateu o recorde do maior grid de largada de todos os tempos, com 63 carros. Este recorde se mantém até hoje.
Minha família retorna à competição
Minha família sempre tentou se manter envolvida em corridas tanto quanto o orçamento permitia. Meu avô trabalhava como mecânico para uma equipe de corridas no final dos anos 50, não muito pelo dinheiro, mas principalmente pela diversão. Meu pai começou sua “carreira” em torneios de rali locais e seu irmão também.
A foto abaixo foi tirada em 1975 e mostra o meu pai ao volante do seu carro de uso diário, um ‘VW Fusca’ 1972, durante o Rali da Graciosa, a nossa versão do Rali de Monte Carlo:
O nº 44
Depois de um longo hiato longe das competições, meu pai e seu irmão viram na categoria Speed 1600 a oportunidade perfeita para voltar. Meu pai encontrou o candidato certo para seu próximo carro de corrida; seu cunhado estava vendendo um Fusca 1976 imaculado, já desmontado para a pista, e ele o comprou na hora. O carro nasceu com motor 1300 que foi rapidamente substituído pelo 1600 de uma Kombi.
Demorou apenas um mês para deixar o nº 44 pronto para correr, mas a temporada de 1989 estava quase acabando e meu pai só teve a chance de dirigir seu carro nas duas corridas restantes.
Os pilotos da categoria Speed 1600” eram, ao mesmo tempo, patrocinadores, chefes de equipe e mecânicos. Esporte amador em grande estilo.
O autódromo oficial da minha cidade natal, Curitiba, localizado no município vizinho de Pinhais, estava passando por algumas reformas na época, e por isso a temporada de 1989 realizou-se em uma pista de terra localizada na periferia da cidade.
No ano seguinte, nosso autódromo estava pronto e papai correu toda a temporada de 1990, e mesmo depois de ser desclassificado por duas corridas (por ter coletores de admissão fora do regulamento), ele terminou a temporada na terceira posição.
Em 1993 meu pai vendeu seu carro e o novo proprietário manteve a mesma pintura e número. Lembro-me de tê-lo visto em ação mais algumas vezes, mas depois disso, perdemos o paradeiro do nº 44.
O nº 12
Ao mesmo tempo que meu pai preparava o nº 44, meu tio também preparou seu Speed 1600, um modelo 1972, mas infelizmente não teve muita sorte com seu carro, que quebrou nas duas primeiras corridas da temporada de 1990.
Ele ficou muito frustrado e decidiu levar o carro de volta para sua garagem e nunca mais tocou nele. O nº 12 permaneceu adormecido por 28 anos.
Infelizmente meu tio faleceu em 2017, foi um choque para toda a família, pois ele era um cara superlegal, sempre contando piadas e fazendo as pessoas sorrirem.
Meu tio deixou uma pequena coleção de carros para meu primo, seu único filho, e obviamente, o nº 12 fazia parte dela. Por algum motivo que ainda não entendo, meu primo decidiu não ficar com o velho VW Fusca. Vender seria complicado, pois os documentos estavam muito bagunçados e o carro, bastante enferrujado. Então, em vez de vender o carro a preço de banana, ele o ofereceu ao meu pai, de graça.
Meu pai ficou encantado com este presente, ele e seu irmão foram sócios nos negócios e em hobbies desde 1960, e ter seu ‘VW Fusca’ de corrida seria mais do que uma grande honra.
Ele se aposentou em 2015 e, desde então, buscava algo para ocupar seu tempo. Ele imediatamente abraçou a tarefa de restaurar o nº 12.
Essas fotos aqui mostram o dia em que o carro foi transferido de Curitiba para a casa do meu pai na praia de Barra Velha, em Santa Catarina, a 175 km de distância.
Em abril de 2019, minha esposa e eu finalmente tiramos algumas semanas de folga e fomos visitar a família e amigos no Brasil. Não tínhamos voltado para casa desde que havíamos nos mudado para o Canadá, em 2015.
Obviamente, eu estava morrendo de vontade de ver o velho ‘VW Fusca’ de perto.
Trouxe até um presentinho, um conta-giros VDO, bem parecido com o que equipava originalmente o “Super Fuscão”:
Papai está restaurando o carro com um orçamento extremamente apertado e está fazendo o trabalho sozinho. Ele tem 70 anos e com certeza está gastando seu doce tempo para fazer isso.
Quando chegamos lá, a carroceria estava pronta e até as bandejas do piso haviam sido substituídas.
Ele reduziu a taxa de compressão o suficiente para fazer o motor funcionar com gasolina e substituiu o sistema de dois carburadores por um único. Ele disse: “Eu quero paz de espírito, não vou correr de qualquer maneira”.
Ele adora levar o chassi rolante para testes curtos; com certeza eu também me diverti muito ao dirigir o chassi. Sem o peso da carroceria, o chassi rolante pode ser bem rápido.
Em 2020, a missão de restaurar o nº 12 foi cumprida. A esta altura, o carro está a meio caminho de poder andar na rua, tem todas as luzes necessárias, mas papai se recusa a instalar os para-choques, que são obrigatórios no Brasil.
Algumas pessoas dizem que um carro antigo nunca estará completamente pronto, então acredito que o velho ‘VW Fusca’ manterá meu pai feliz e ocupado por muito tempo.
No Brasil, o ‘VW Fusca’ é mais do que um carro, é uma instituição. Simples, acessível e confiável, foi a escolha óbvia como o primeiro carro para gerações de brasileiros (o do meu era um modelo 1966). O Fusca nos ensinou não apenas como dirigir, mas também como consertá-lo, como modificá-lo e, finalmente, como competir.
Para minha família, o nº 12 é muito mais do que um hobby, é uma linda homenagem ao meu tio, um rapaz gentil que viverá para sempre no coração de familiares e amigos.
Rubens Florentino Junior por ele mesmo
Sou leitor do “Falando de Fuscas e Afins” no AUTOentusiastas e posso dizer com certeza que é a minha coluna favorita no site. O Fusca faz parte da minha vida e da vida de minha família, assim como tantas outras famílias não só no Brasil como no mundo todo. O Fusca foi meu primeiro carro, quando em 1984, meu pai me deu um modelo 1966, azul com o interior branco, motor 1200-cm³ e sistema elétrico de 6 volts. Algum tempo depois troquei por um ’69, bege, a famosa cor café com leite. Fuscas sempre fizeram parte da história de minha família, meu pai até participou de algumas competições ao volante de alguns Fuscas.
Nasci em uma família de fanáticos por carros, em Curitiba. Meu avô tinha uma oficina especializada em Ford Flathead V8 nos anos 1950 e ele foi mecânico de uma equipe de corridas nessa mesma época. Meu pai também teve uma oficina, onde trabalhamos juntos por sete anos.
Minha paixão por aviões me fez ingressar na FAB em 1988 e estudar manutenção de aeronaves.
Trabalhei durante sete anos no setor de peças da Powertech Turbo & Aspro, em Curitiba, onde me envolvi com clássicos americanos e competições de arrancada.
Em 2015 eu e minha esposa nos mudamos para o Canadá, e eu estou trabalhando por aqui no setor de peças de uma concessionária Toyota. Abaixo, uma foto minha:
AG
Agradeço ao Rubens Florentino Junior por ter feito contato e ter oferecido seu causo para publicação aqui na coluna “Falando de Fusca & Afins”. Todo o material fotográfico também pertence a ele. Morando no Canadá ele não abandonou o seu hobby ligado a carro e mantém o blog, em inglês, “The Classic Machines”, cujo endereço é: https://theclassicmachines.com/ todos estão convidados para fazer uma visita ao blog dele.
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