Trancos em qualquer mecanismo são indesejáveis, é intuitivo, daí a importância de dirigir de maneira a mais suave possível para diminuir as possibilidades de o carro ter problemas. E dirigir de modo suave independe de velocidade ou ritmo de viagem.
O que vou contar hoje tem tudo a ver com (falta de) suavidade, duas experiências familiares, uma comigo, outra com meu irmão. E que faz tempo: éramos adolescentes.
O Citroën 11
Meu tio por parte de mãe, Paulo Amaral, começou a me ensinar a dirigir quando eu ainda não tinha completado 11 anos. Era 1952, ele tinha 28 anos e havia comprado alguns meses antes, a duras penas, um Citroën 11 L 1947 (Foto de abertura, ilustrativa), dando em troca uma motocicleta BMW R50 1938, por sua vez adquirida entrando com uma Royal Enfield 350 do pós-guerra no negócio. Ela era motociclista profissional, fazia parte do corpo de motociclistas da Polícia Especial onde, inclusive, era instrutor.
Eu disse “a duras penas” porque ele gastou todo o seu dinheiro para passar para o mundo das quatro rodas. A “mana do peito” — minha mãe — o ajudou alguns meses para que ele pudesse colocar suas finanças em dia. Foi nesse Citroën que iniciei minha vida de motorista.
Era comum ele aparecer com a esposa na nossa casa na Gávea, depois do jantar, para uma “aula”. Saíamos os cinco — eu, ele, a esposa Flórida, meu pai e minha mãe — para a aula-passeio. Era divertido, apesar da minha natural tensão e das broncas do tio. Interessante é que nunca me incomodaram, cedo as entendi como naturais em qualquer aprendizado, o que me seria muito útil no curso de pilotagem de avião anos depois, as broncas do meu instrutor.
Morávamos numa rua sem saída com um largo no final, em que o último trecho era uma subida — curta, acho que nem duzentos metros tinha, e de pouca inclinação.
Numa dessas noites voltando da “aula”, em vez de estacionar diante da casa, o tio Paulo disse “vamos até o fim da rua e voltar”. Assim foi feito, para minha alegria. Chegando no largo manobrei sem dificuldade e posicionei o Citroën (lembro da placa como se fosse hoje, DF 2-43-10) para descer a ladeira.
A primeira estava engatada, pedal de embreagem apertado (embreagem desacoplada), levantei o pé do freio, o carro começou a andar e a embalar. O tio Paulo então disse: “Bob, tire o pé da embreagem para você sentir o freio-motor”. Na minha inocência combinada com desconhecimento de mecânica, obedeci, levantando o pé de uma vez. Que tranco! Logo todos começamos a ouvir barulho de peças metálicas caindo no paralelepípedo… Engrenagens caindo da carcaça de liga de alumínio rachada ao meio!
Mais uma vez a mana do peito, agora por obrigação moral além da dó do mano querido, entrou em cena arcando com o conserto….
A Kombi 1955
A Kombi era a alegria da casa. Tudo o que o Alexander Gromow conta na sua coluna “Falando de Fusca & Afins” sobre a atração que a Kombi exerce sobre crianças dos 8 aos 80 anos é totalmente verídico. Pai, mãe. meu irmão e eu adorávamos a Kombi.
Depois de alguns meses, e já no ano seguinte, a Kombi, de motor 1200 de 30 cv, já não era tão novidade, nosso pai começou a fazer vista grossa para nossas curtas escapadas pelo bairro, meu irmão já com 16 anos dirigindo. Ele sempre me deixava dirigir um pouco sem que papai soubesse.
Nossa alegria das alegrias era levantar os dois para-brisas, já que a Kombi havia vindo de fábrica (da Brasmotor) com o opcional para-brisa Safári. Como era bom, como era agradável! sentir o vento na cara. E como era bom também entrar nas curvas com ela. Nossa casa ficava a uns 500 metros do início da Estrada da Gávea (parte do Circuito homônimo) e era para lá que sempre íamos “treinar”. Pavimentação de concreto perfeita, coisa de primeiro mundo,
Subida, chegada ao topo, descida em direção a São Conrado. Era manobrar e voltar. Que tempos! A favela da Rocinha era praticamente desértica, tráfego quase nulo, verdadeiro paraíso. Uma pista à disposição de quem quisesse andar rápido.
Num desses “treinos” meu irmão Rony precisou fazer uma redução de terceira para segunda, ainda não conhecíamos o livro de Piero Taruffi, “Tecnica e Pratica della Guida Automobilistica da Corsa“, no qual o vencedor da última Mille Miglia, em 1957, entre outras técnicas explicava o punta-tacco como forma da dar a aceleração interina enquanto se freava. O Rony “chamou” uma segunda e soltou o pé da embreagem de uma vez (para que tanta pressa?) e houve um barulho de algo quebrando. Assustados, vimos que a Kombi continuava andando, mas com um barulho estranho no motor.
Voltamos para casa devagar e à noite contamos para papai o que havia acontecido. No dia seguinte, cedo, ele levou a Kombi à concessionária Rio Motor, em Botafogo, exatamente defronte do portão principal do Cemitério São João Batista. Um técnico, alemão, Adolf Grosse (o Ronaldo Berg já falou nele na sua coluna “Do fundo do baú”), ouviu o barulho e disse “é no motor, temos que desmontar”.
No meio da tarde Grosse telefonou para o meu pai e disse que o virabrequim havia quebrado. Mais nada, nenhum dano em outras peças e partes do motor. Era incrível o boxer ter funcionado naquelas condições A garantia já havia expirado — acho que era de seis meses ou 10.000 km naquele tempo, salvo engano — e papai pagou o serviço. No dia seguinte a Kombi estava pronta.
Devia haver falha de material ou de usinagem, pois mesmo com o tranco o virabrequim não deveria quebrar. Mas o fato é que se o Rony já soubesse o que era punta-tacco e aceleração interina, ou soltasse a embreagem devagar, certamente não teria ocorrido a quebra.
Dois prejuízos evitáveis não fossem os trancos.
Até domingo que vem.
BS