Há muitos anos eu vi uma propaganda estranha na página 21 do livro “Volkswagen Beetles, Busses & Beyond” escrito por James M. Flammang. Mostrava um VW Fusca cheio de militares alemães, que dá para reconhecer pelo tipo de capacete muito peculiar, com uma enorme arma apontando para frente. No canto esquerdo do desenho uma família se apertava contra a parede com uma expressão de medo. Dava para entender que era algo negativo, mas eu nunca parei para ver do que realmente aquilo se tratava.
Estes dias eu decidi procurar uma cópia legível deste anúncio na internet e não a achei. Voltei para o livro e vi, com alegria, que apesar de ocupar só um quatro da página do livro, a reprodução estava bastante nítida. Peguei um celular e caprichei na foto. Passei a foto para o computador e consegui uma via legível deste documento histórico.
Sim, agora eu tinha que datilografar o texto para ter uma via de trabalho no computador; em seguida foi a hora de fazer a tradução para o português. As coisas começaram a ficar mais claras, e acho que vocês terão a surpresa que eu tive.
A foto de abertura é uma parte deste anúncio, que reproduzo abaixo na melhor resolução possível — talvez o texto fique legível. O desenho em si é grosseiro, quase um esboço (o desenho do VW Fusca é grotesco), mas sugere muito bem o que a agência de propaganda queria comunicar:
O contexto deste anúncio fica bastante claro quando se lê o seu texto que eu apresento abaixo em sua íntegra, inclusive com as notas finais, que ajudam a entender do que tratou esse assunto publicado na década de 1940, com a Segunda Guerra Mundial a pleno vapor. Lembrando que os Estados Unidos entraram nesta guerra em 1941, após o ataque de surpresa dos japoneses à base naval de Pearl Harbor, mas as notícias da guerra já ocupavam as primeiras páginas dos jornais há um bom tempo.
Texto do anúncio:
Projetado para quatro soldados e uma metralhadora… também para uso familiar
O MAIS NOVO SONHO DE UM DITADOR – o “carro do povo”. Feito pelo Estado para uma família do Estado. Mas o exército especificou que deve ser capaz de carregar 4 soldados com equipamento completo ou uma metralhadora e tripulação. Custará à família um ano de salário e apenas um milhão e meio de unidades é prometido até 1945. E você vai andar neste carro ou terá que caminhar.
Sra. AMÉRICA, aqui o fazemos um pouco diferente. Nenhum ditador, nenhum exército, nenhum governo se atrevem a lhe dizer qual será o estilo de seu carro. Qual a cor de seu vestido, qual a forma de seu ferro de passar roupa. Você sabe todas as respostas e pode prová-lo. Sua casa é confortável, seus filhos estão bem, sua família está feliz. Vocês são livres.
Agora, tenha estas duas imagens em mente. Lembre-se delas durante toda a sua vida. Elas são noite e dia, preto e branco, erradas e certas.
UM: Você pode deixar um governo decretar o que você deve fazer, o que você deve comprar, quanto você deve pagar.
DOIS: Você pode manter esses direitos para si mesmo.
Se você votar no número dois, como a maioria das americanas fará, você deve estar preparada para fazer certas coisas por si mesma. Você deve ter conhecimento, bom gosto, bom julgamento – um pequeno preço suficiente para pagar por sua liberdade de escolha e seu direito de pensar por si mesmo.
E é aí que entra GOOD HOUSEKEEPING. Suas páginas editoriais estão repletas de ideias, novas e melhores maneiras de fazer as coisas que você quer fazer. Suas páginas de publicidade exibem os esforços honestos de centenas de fabricantes para agradar você. Eles sabem que você é o chefe. Eles percebem que seu menor desejo é a lei deles. Se o produto não for como anunciado no Good Housekeeping, nós, seus humildes servidores, o substituiremos ou devolveremos seu dinheiro.
Apoiando ambos tanto o editorial quanto a publicidade estão os famosos Good Housekeeping Institute and Bureau — laboratórios de teste que foram construídos e são mantidos apenas para atendê-lo — para ter certeza do que é oferecido a você, para ter certeza de que os produtos e serviços oferecidos são de valor honesto, e que farão o que é apregoado no anúncio. Sim, Sra. América, você tem duas opções neste mundo. Duas opções no que você pode se transformar.
Um é o decreto do ditador. Que diz: “Isso é bom para você. E pegue e goste – por ordem do ditador.”
O outro é o direito de livre escolha. Que diz: “Você pode escolher livremente qualquer uma das muitas coisas boas.”
Imagine, então, sua irmã de uma terra estrangeira, com um decreto de um ditador debaixo do braço. Que diz: “Você não é competente para selecionar o que é bom para você. Eu, o ditador, vou resolver isso”.
Você a encara com uma cópia da Good Housekeeping em suas mãos. Que diz: “Isto é para ajudá-la a tornar-se mais competente – para ajudar a protegê-la contra fraudes e perigos, para que você possa fazer compras em paz – e comprar o que seu coração mais deseja”.
Good Housekeeping é um livro aberto para qualquer pessoa com um produto honesto para vender. Há apenas uma condição: o produto deve fazer o que é prometido e o que é apregoado no anúncio do fabricante.
Todos os produtos anunciados na revista são cuidadosamente examinados para isso pela equipe técnica da Good Housekeeping. Se algum deles apresentar defeito ou não estiver em conformidade com o anunciado, ele será substituído ou o dinheiro devolvido.
Além disso, qualquer fabricante cujo produto se enquadre no escopo de teste do Good Housekeeping Institute ou do House Keeping Bureau pode trazer seu produto e testá-lo gratuitamente, quer ele anuncie na revista ou não, desde que (1) esteja instalado com boa estabilidade e (2) seu produto seja vendido com uma distribuição razoavelmente ampla.
Este serviço, que custou à revista mais de um milhão de dólares nos últimos cinco anos, visa proteger o consumidor, sem de forma alguma interferir na sua liberdade de escolha.
Revista Good Housekeeping
Recuse substitutos: insista nas Marcas Anunciadas!
Algumas palavras sobre a revista Good Housekeeping
A Good Housekeeping é uma revista feminina americana que apresenta artigos sobre os interesses das mulheres, testes de produtos do The Good Housekeeping Institute, receitas, dieta e saúde, além de artigos literários. É bem conhecido pelo “Selo Good Housekeeping”, um programa de garantia limitada que é popularmente conhecido como “Selo de Aprovação Good Housekeeping”
A Good Housekeeping foi fundada em 1885 pelo editor e poeta americano Clark W. Bryan. Na época de sua aquisição pela Hearst Corporation em 1911, a revista cresceu para uma circulação de 300.000 assinantes. No início dos anos 1960, tinha mais de 5 milhões de assinantes e era uma das revistas femininas mais populares do mundo.
A proposta desta revista é muito interessante, ela age como um departamento de defesa do consumidor não governamental. E o mundo dá as suas voltas. Da crítica publicada em um anúncio dos anos quarenta, em 23 de janeiro de 2017 a concessionária Volkswagen Pittsfield orgulhosamente publicava a seguinte notícia:
“VOLKSWAGEN GOLF GTI ELEITO O MELHOR NOVO CARRO COMPACTO DA GOOD HOUSEKEEPING MAGAZINE DE 2017”
Acho que o tempo conserta muitas coisas.
Conclusão
A revista Good Housekeeping usou a história do VW Fusca durante a guerra para fazer uma inteligente apologia à liberdade, criticando a ditadura alemã do III Reich e, no pacote, fez uma excelente propaganda de si mesma, aliás o que acabou sendo a ênfase de todo o anúncio.
Algo surpreendente para quem somente tinha se fixado na ilustração e, eventualmente, tinha feito alguma conjectura bem diferente do que o que tinha sido publicado na verdade.
Acho que esta matéria pode mitigar a curiosidade de muita gente que, como eu, tinha ficado na superficialidade da ilustração em si.
Mas, na verdade, a agência de propaganda exagerou em alguns de seus argumentos. Talvez coubesse um comentário mais amplo, só que isto se desviaria um pouco das premissas de uma coluna que fala de Fuscas & afins. Porém acho que devo desmistificar algumas coisas para evitar mal-entendidos maiores.
O Volkswagen Sedan, na época chamado de KdF, foi produzido durante a II Guerra mundial numa quantidade pequena. Segundo o livro do Ulrich von Pidoll foram construídos 1.215 VW sedan de 1941 a 1944, sendo 630 entre teto rígido e teto solar e 17 cabriolés, somando-se 568 na versão com o chassi do Kübelwagen.
Apesar de alguns destes carros terem sido usados como Kommandeurwagen (carros de comandantes) não se pode dizer que eles foram “armas de guerra”. Não estou aqui falando dos Kübelwagens ou dos Schwimmwagens, que usavam a mecânica Volkswagen, e que foram veículos dedicados ao uso puramente militar, mas que não foram motivo da propaganda da Good Housekeeping.
Outra afirmação desfocada foi que o KdF seria impingido como única opção para o povo alemão, quando na verdade a ideia era oferecer uma opção popular dentre as muitas opções existentes no mercado alemão e europeu (algumas inatingíveis para a classe trabalhadora). Tanto que havia uma caderneta de poupança para ajudar na compra de um carro (este esquema não chegou a vingar devido à guerra).
Um comentário bizarro foi o da quantidade de unidades previstas, a saber “apenas um milhão e meio de unidades é prometido até 1945”. Talvez, para a indústria americana esta quantidade fosse muito pequena, mas para a Europa era um grande desafio, isto sim. Mas a coisa foi piorada, pois a premissa era que este seria o único carro existente e que ele seria impingido ao povo alemão!
Pois é, o que eu sugiro a você meu caro leitor e leitora é que exerçam o seu senso crítico ao ler o anúncio acima, pois ele não necessariamente traz verdades, há controvérsias de um lado e coisas nitidamente equivocadas de outro. O que eu gostaria é evitar que uma leitura desavisada deixasse informações desfocadas entre vocês.
AG
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A coluna “Falando de Fusca & Afins” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.