Quem não se lembra das caricatas miniaturas de Hot Wheels do passado como o clássico Twin Mill que nada tinha de realista, com dois enormes motores sobrando para fora da carroceria?
Pois bem, este devaneio de mais de um motor no carro é uma realidade explorada desde os primórdios do automóvel, em cada caso com sua necessidade ou justificativa.
O princípio do automóvel com motor de combustão interna é ter um elemento de propulsão, um motor, que envia sua potência para as rodas, duas ou quatro delas. É mais do que o suficiente para o uso comum no dia a dia. Hoje em dia temos de forma bem mais difundida a combinação de um motor elétrico e um motor a combustão nos carros híbridos.
Mas ao longo da história, diversos casos de carros equipados com mais de um motor (de combustão interna), alguns até que bem sucedidos, mas muito raros se falarmos de produção seriada. A maioria ou foram protótipos, ou foram carros de corrida.
A grande dificuldade de se conciliar dois motores no mesmo carro é a sincronização entre eles. Hoje em dia, com toda a eletrônica embarcada que os carros dispõem, seria até mais viável, mas fora da era da eletrônica, casar a rotação, torque e frequência de dois motores é bem complicado.
Se um motor estiver com mais potência ou mais rotação que o outro, haverá diferença entre a tração em cada eixo e haverá sobrecarga na estrutura e no comportamento dinâmico. No passado, a proposta de ter dois motores era simplesmente ter mais potência total no carro e também em muitos casos a tração nas quatro rodas.
Listamos aqui exemplos de carros com dois motores que foram feitos pelos fabricantes ou preparados para corrida, ganhando fama ou sendo tecnicamente extraordinários.
Bugatti T45 (1930)
Ettore Bugatti era um gênio da engenharia e a história está ai para comprovar. O seu famoso modelo, o Tipo 35, foi um dos mais bem sucedidos carros de corrida de todos os tempos. O pequeno lendário bólido marcou sua era pela sua construção leve e otimizada, com um refinado motor de oito cilindros em linha, três válvulas por cilindro, virabrequim de cinco mancais e posterior sobrealimentação por compressor.
O T35 foi o mais vitorioso Bugatti de todos os tempos, mas eventualmente ficou defasado em relação aos concorrentes italianos. Um substituto era necessário para manter a competitividade da Bugatti nos circuitos de Grand Prix. Uma das opções foi o Tipo 45.
A proposta era fazer um T35 um pouco maior, com suspensão reforçada e um motor único, que tinha como base teórica um antigo motor de aviação da Bugatti mas dimensionado para um carro de corrida. O T45 tinha um motor de 16 cilindros em “U” de 3,8-litros, com duas bancadas paralelas de oito cilindros cada, e com um virabrequim para cada bancada. Em resumo, eram dois motores paralelos unidos por um sistema de engrenamento, justamente o ponto fraco do carro.
Para completar o conjunto da obra, cada bancada tinha seu próprio compressor tipo Roots e dois carburadores Zenith. O potência do T45 era algo em torno do 250 cv. Ao unir os dois virabrequins, um eixo de saída recebia a montagem do conjunto da embreagem e a caixa de câmbio.
Apenas dois chassis foram feitos e apenas um carro completo foi montado, que existe até hoje.
Alfa Romeo Bimotore (1935)
O lendário 16C Bimotore (bimotor em italiano, 16 cilindros) foi um marco na história da Alfa Romeo por dois motivos: foi a reposta italiana perante os potentes carros alemães da Mercedes-Benz e da Auto Union que vinham dominando as corridas de Grand Prix, e foi o primeiro carro idealizado por Enzo Ferrari e a levar o escudo do cavallino rampante.
Enzo comandava e Scuderia Ferrari, equipe responsável pelos carros de corrida oficiais da Alfa Romeo, o que hoje chamamos de equipe de fábrica. Ferrari e Luigi Bazzi, um engenheiro italiano que trabalhava na equipe, bolaram como poderia ser um carro com potência suficiente para enfrentar os alemães, e a solução veio na forma mais básica. Adicionar mais um motor no carro.
Usando a base do já conhecido modelo P3, a equipe de Bazzi criou espaço para mais um motor atrás do piloto, deslocando os tanques de combustível para as laterais do carro. O grande desafio era como unir os motores de oito cilindros cada. A solução foi montar o motor traseiro virado para frente, unido ao motor dianteiro pelo diferencial central, e este enviada o torque separadamente para cada roda traseira em uma montagem que formava um Y.
Os dois motores juntos geravam 550 cv, aproximadamente 100 cv a mais que os Mercedes. Era a melhor chance da Alfa Romeo competir nas provas de alta velocidade em Avus, Tripoli e Berlim. Tazio Nuvolari, René Dreyfus e Louis Chiron eram os pilotos da Alfa para domar o Bimotore.
O enorme peso do carro era um problema para o contorno de curvas, sobrecarregando demais os pneus, que pouco duravam, mas a velocidade máxima de 320 km/h era o trunfo para combater os Auto Unions e Mercedes. Infelizmente o carro não foi o sucesso que se prometia, o peso excessivo era um problema grande demais para se contornar e os pneus sofriam muito, prejudicando o rendimento do carro durante as provas mais longas.
Uma versão para recorde de velocidade foi feita no Bimotore e em 1935 atingiu 364 km/h na estrada entre Florença e Livorno, na Itália.
Fageol Porsche 356 (1953)
Lou Fageol é um homem muito criativo e pouco ajuizado. Membro da família dona da Fageol Motors Company e da Twin Coach Bus Company, empresa construtora de carrocerias de ônibus na cidade de Kent, em Ohio, sempre teve projetos de carros com dois motores, que ainda vamos contar com detalhes aqui no AE.
Dentre eles, um dos mais curiosos foi o Porsche 356 bimotor. Lou já havia experimentado a configuração de tração nas quatro rodas com um motor para cada eixo, e foi bem sucedido de certa forma, e aplicou esta construção em um carro para corridas do Sports Car Club of America (SCCA) nos EUA.
A proposta de adicionar mais um motor em um 356 foi feita de forma prática. Assim como o motor traseiro original montado no balanço traseiro, o novo motor dianteiro foi montado à frente do eixo, como um espelho da traseira.
No caso do 356, dois motores de quatro cilindros e 1,5 litro foram usados, totalizando ao perto dos 150 cv. O próprio Lou correu com esse carro, que tinha uma estranha carroceria de 356 modificada com uma grade de Packard. Quem sabe não era a proposta de um carro a ser produzido pela sua empresa.
Depois do 356, Fageol criou seu próprio carro com dois motores Porsche e chassi tubular especial, mas este é assunto para outra matéria em breve.
Saab 93 “O Monstro” (1959)
A Saab era uma tradicional empresa sueca com fortes laços com inovações e aviação (o nome Saab vem de Svenska Aeroplan Aktiebolaget, que em sueco significa algo como Aviões Suécia S.A), datada de 1945. Seus automóveis sempre foram diferentes, fugindo do convencional que se via nas demais marcas europeias.
O segundo modelo de produção foi o 93, fabricado de 1955 a 1960, equipado com motor dianteiro de três cilindros, dois tempos, de 748 cm³. Já nesta época, a Saab tinha envolvimento com o automobilismo e seus carros eram usados por pilotos particulares em provas de rali e de resistência. Até mesmo na Mille Miglia italiana os Saab 93 estavam presentes.
Em 1959, a equipe de desenvolvimento da marca partiu para uma tentativa bem maluca de aprimorar o desempenho do 93, que mesmo com as melhores preparações no pequeno três-cilindros, a potência não era das maiores. Assim como o raciocínio dos italianos no Alfa Bimotore, uma solução seria colocar um motor a mais, e assim nasceu o 93 Monstret (monstro em sueco).
Com dois motores de três cilindros montados em linha na dianteira do carro, na transversal e não na longitudinal, o pequeno Saab produzia respeitáveis 140 cv e chegava a 200 km/h nos testes na gélida Suécia. Mesmo removendo inúmeros itens do carro para redução de peso e usando um capô de plástico, o 93 com dois motores tinha a frente bem pesada, o que prejudicava o comportamento dinâmico nas curvas. Este contraponto, junto com a complexidade do sistema para a montagem da transmissão e as dificuldades de homologar o carro para correr foram suficientes para o time abandonar a ideia.
Felizmente o carro sobreviveu e está hoje no Museu da Saab.
Citroën 2CV Sahara (1960)
Produzido pela Citroën entre 1960 e 1966 com um total de 694 unidades, o 2CV Sahara foi um dos únicos automóveis de produção regular para venda ao público equipados com dois motores.
A Citroën criou a versão Sahara para ser usada nas áreas de mineração e perfuração de petróleo no norte da África, onde a acessibilidade era muito restrita e apenas veículos com boa capacidade de tração conseguiam circular sem maiores dificuldades. O fato do 2CV, mesmo com dois motores, ser um veículo relativamente leve e barato, facilitou ainda mais sua aplicação na região.
Comparado com o 2CV normal de produção, o Sahara era quase que um carro único, pois desde os painéis de carroceria até o quadro de chassi eram diferentes. Freios inboard montados no centro do carro eram usados no Sahara para protegê-los das intempéries do uso off-road que ele estava sujeito.
Os dois motores que equipavam o carro eram iguais, 425 cm³ de dois cilindros arrefecidos a ar, que combinados produziam 38 cv. Cada motor tinha sua própria transmissão, e poderiam ser usados os dois, apenas o dianteiro, ou apenas o traseiro. Isto permitia maior economia de combustível quando a tração 4×4 não era necessária, ou mesmo seguir rodando caso um motor parasse de funcionar.
Antes do 2CV, apenas o Tempo 1200G havia sido fabricado com dois motores e tração integral, mas voltado basicamente ao uso militar na Segunda Guerra Mundial. O 2CV Sahara foi um dos mais criativos carros de todos os tempos. Simples, funcional, e com conceitos usados até hoje.
Mini Cooper Twini (1964)
O Mini Cooper é um dos carros mais amados de todos os tempos. Praticamente uma caricatura, pequeno e muito ágil, fez muito sucesso como a estrela do filme “Um Golpe à Italiana” (The Italian Job, 1969) com Michael Caine.
A agilidade do Mini sempre o destacou no mundo do automobilismo, sendo o pequeno Davi contra os grandes Golias. A ideia de ganhar mais potência e tração foi concebida por Paul Emery, engenheiro que ficou conhecido por seus projetos nada convencionais, como o F3 de motor e tração dianteiros, e que instalou um motor adicional na traseira de um Mini.
A ideia era ótima, mas não passou disso, pois os problemas da adaptação complicaram a produção. Entretanto, John Cooper teve a chance de andar no Mini de Paul e ficou alucinado. Ele tinha que levar esse conceito para a produção da Mini, e foi o que aconteceu.
Com todo o time de engenharia da Mini trabalhando no conceito de Paul, o primeiro Mini Twini foi montado com dois motores, o dianteiro 1,1-litro e 85cv e o traseiro um 1,2-litro de 98 cv. Toda a estrutura do carro foi reforçada para aguentar os esforços adicionais, mas foi um sucesso. Era o carro de rali perfeito, mas infelizmente nunca correu oficialmente.
Outros preparadores fizeram uso do conceito, e um deles até colocou um carro na Targa Florio de 1963. A equipe Downton Engeneering contou com o piloto e jornalista belga Paul Frère ao volante do Twini número 1962 para chegar ao final da prova em 27° lugar.
Fitti-Volks Bimotor (1969)
O representante tupiniquim na nossa lista não poderia deixar de ser o Fittipaldi-VW 3200, ou como é mais conhecido, o o Fusca Bimotor.
Construído às pressas para repor outro projeto que estava em andamento e que não ficaria pronto a tempo para as corridas de 1969, o Fitti-VW 3200 foi criado por Ricardo Divilla, o mesmo engenheiro responsável pelos Copersucar FD-01, com a premissa de ter em mãos um carro leve, barato e com potência satisfatória.
Com dois motores de Fusca que tiveram a cilindrada aumentada de 1.285 cm³ para 1.584 cm³ com os kits Fittipaldi da época e totalizando 3.168 cm³, o mecânico de competição Darci Medeiros, falecido recentemente, foi um dos responsáveis por fazer a junção dos motores. Usando uma junta elástica Giubo, de borracha, para absorver vibrações e unir os dois virabrequins, os dois motores foram montados em linha no centro do carro. Essa junta elástica, circular, era do mesmo tipo usada no cardã do FNM 2000 JK, por exemplo.
O chassi do Fusca foi cortado atrás do motorista e nele foi montado um subchassi tubular de Fórmula V para receber os motores, mas estes eram posicionados à frente do eixo e não atrás, como no Fusca, ou seja, configuração de motor central-traseiro. O transeixo e os freios vieram de um antigo Porsche Spyder. Para levar de arrefecimento aos motores foram usados dutos de ar com entrada por uma abertura na parte superior do para-brisa, numa engenhosa solução. ..
A carroceria de compósito de fibra de vidro, feita pela Glaspac, era consideravelmente mais leve e o Fitti-VW pesava cerca de 500 kg.
O carro era impressionante, e na primeira corrida no no autódromo do Rio de Janeiro, em Jacarepaguá, largou em segundo lugar, atrás do Alfa Romeo 33 de José Carlos Pace e na frente de máquinas como Lola-Chevrolet T70 e Ford GT40. Na corrida, o câmbio quebrou com o carro bem colocado, mas já foi o suficiente para marcar a existência deste carro.
VW Scirocco BiMotor (1983)
O Scirocco é um modelo da VW que nasceu com base no Golf mas com uma linha mais esportiva, um cupê. A primeira geração do carro foi fabricada de 1974 a 1981 e a segunda, de 1981 a 1992. Com esta segunda geração, a VW Motorsport, que já havia feito um Jetta de dois motores, repetiu a solução no Scirocco.
Duas unidades foram feitas pela Motorsport. A primeira tinha dois motores 1,8-litro preparados com cabeçotes de corrida, injeção de combustível, corpos de aceleração individual para cada cilindro, alta taxa de compressão e 190 cv em cada motor. O Scirocco acelerava de zero a 100 km/h em meros 4,1 segundos, mais rápido que um Porsche 911 da época.
O segundo carro, também com dois motores de 1,8 litro, era um pouco mais manso, com 145 cv em cada motor, cabeçotes Oettinger de duplo comando e 16 válvulas, e um visual um pouco mais parecido com o que poderia ser um modelo de produção.
Nos dois carros, cada motor tinha sua transmissão (o primeiro carro era manual e o segundo tinha caixas automáticas) e tracionava um só eixo. Podemos dizer que o primeiro Scirocco era a versão VW do Audi Quattro de corrida, e o segundo carro já mais civilizado.
Mercedes-Benz A38 AMG (1998)
No fim dos anos ’90, a Mercedes colocou em prática a ideia de criar um Classe A mais esportivo. O carro original não tinha muita aptidão para tal, mas com um pouco de boa engenharia alemã, deram um jeitinho.
Com uma limitada série de quatro carros (até onde se sabe), os engenheiros optaram por uma solução mais radical e criativa, que era adicionar um segundo motor em um A 190. Montado na traseira do carro e tracionando as rodas traseiras, outro motor original do A 190 de 130 cv fez nascer o A38, como foi chamado, com uma potência total de 260 cv.
A suspensão foi bem modificada, deixando o carro mais baixo, com maiores bitolas , freios de E55 AMG. O controle de estabilidade foi fixado sempre no modo ligado, o que já dá uma ideia do que o carro é capaz com essa potência extra. O câmbio automática dos dois motores facilitou a sincronização, que com o uso de sistemas eletrônicos era uma tarefa bem mais simples que no passado analógico.
Mikka Häkkinen, então piloto da McLaren-Mercedes, foi um dos premiados a usar um destes A38 no dia a dia, e pelo visto gostou bastante da diversão.
Mosler Cadillac Twinstar Eldorado (2000)
Cadillacs do final dos anos ’90 não são exatamente o que se imagina quando falamos de carros potentes, mas sempre há uma exceção.
A Mosler, empresa americana da Flórida, fabricante de carros esportivos especiais, teve como um de seus projetos a preparação de um Cadillac Eldorado, que inicialmente seria um carro de motor central, mas que acabou recebendo um motor adicional.
Chamado de Twinstar, o Eldorado tinha na dianteira o motor V-8 Northstar de 280 cv e na traseira outro V-8 de 310 cv. Cada motor tinha a sua caixa automática, com relações diferentes entre si, o que resultava que os dois não eram sincronizados. Warren Mosler, o fundador da marca, explicava que enquanto o motor dianteiro trocava de marcha, o traseiro ainda estava tracionando, assim não se perdia aceleração em momento algum.
Como todo bom Cadillac, o elevado peso em ordem de marcha não ajudava muito no desempenho e na dirigibilidade, que poderia ser muito melhor do que era. De 0 a 100 km/h demorava 4,6 segundos e o quarto de milha era feito em 12,7 segundos.
Na época, se você levasse seu Eldorado até a Mosler com mais US$ 30.000, saía de lá com um Twinstar.
MB